quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A caminho do Natal

Quando, há já mais de dois anos, eu aqui falava da poesia de tema religioso, não conhecia um livro, preparado por José Régio e por um colaborador, de nome Alberto Serpa, dedicado a essa poesia. Sabia que ele existia, mas não o conhecia. Recentemente procurei-o no Centro de Estudos Regianos, em Vila do Conde, e encontrei-o. Tem por título Na Mão de Deus. Antologia da Poesia Religiosa Portuguesa, e foi publicado em 1958. Vou ler dele um pequeno conjunto de quadras soltas seleccionadas e um soneto. Cada uma das quadras contém uma pequena lição a meu ver muito oportuna.

Tu chamas amor-perfeito
A coisas que a terra cria;
Amor-perfeito há só um,
Filho da Virgem Maria.

Quem quiser amar a Deus
Não diga que não tem tempo:
Pode andar no seu trabalho
Com Jesus no pensamento.

No ventre da Virgem Mãe
Encarnou divina graça;
Entrou e saiu por ela
Como o sol pela vidraça.

Se este mundo for ao fundo,
Cheio das ondas do mar,
Inda fica o Outro Mundo
Que a gente ganha a rezar.

Sou cigana do Egipto
O meu ofício é furtar.
Hei-de furtar Deus Menino
Prà minha alma se salvar.

Já pedi a morte a Deus,
Que disse que não ma dava,
Que pedisse a salvação
Pois que a morte certa estava.

Tu dizes que não há Deus,
Afirmas que nunca O viste.
Inda não foste ao Brasil
E bem sabes que ele existe.

Amar e saber amar,
Amar e saber a quem:
Amar a Nossa Senhora,
Não amar a mais ninguém.

Peço a Deus, mas não me atrevo,
Quero pedir, fico mudo:
Me pague o que a Ele eu devo,
Me troque nada por tudo.

Tudo o que for verde seca,
Vindo o rigor do Verão;
Tudo no mundo se acaba,
Só a graça de Deus não.

Ó Rosa, já hoje em dia
Quem mais faz menos merece!
É a terra que nos cria,
Deus do Céu quem nos conhece.

Agora um soneto duma poetisa anónima do século XVII. Se calhar era uma irmã, como as clarissas de Vila do Conde. O seu tema é pascal, não natalício: é uma meditação monologada sobre as Chagas do Crucificado, uma oração.

A vós correndo vou, Braços sagrados
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que para receber-me estais abertos
E por não castigar-me estais cravados.

A vós, divinos Olhos eclipsados,
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Que para perdoar-me estais despertos
E por não devassar-me estais fechados.

A vós, pregados Pés por não fugir-me,
A vós, Cabeça baixa por chamar-me,
A vós, Sangue vertido para ungir-me,

A vós, Lado patente, quero unir-me,
A vós, precisos Pregos, quero atar-me
Para ficar unida, atada e firme.

É um texto conceituoso e cheio de paralelismos e anáforas, mas que faz todo o sentido. Não basta dizer que a Cruz é um símbolo cristão, é preciso muito mais, é preciso perceber o sentido do sofrimento redentor do Filho de Deus, que é que dá depois sentido ao sofrimento humano.
O Natal, a chegada daquele “que vem em nome do Senhor”, só se esclarece em definitivo na Cruz: o menino deitado no presépio já a anuncia.
Os meus votos de um santo e feliz Natal para os ouvintes do Venha daí!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Matias Lima

Há muitos anos publiquei no Boletim Cultural Póvoa de Varzim um pequeno trabalho sobre um poeta que conheci de vista quando era adolescente. Chamava-se Matias Lima. Era um homem abastado, culto, que nasceu e viveu principalmente no Porto, mas que tinha antepassados próximos de uma terra vizinha da minha e sobretudo possuía uma bela residência nas redondezas. Nasceu em 1885 e faleceu em 1970.
No meu tempo de criança e mesmo adulto, eu não sabia nada da obra dele. Foi só quando já ensinava na Póvoa que coleccionei a sua obra, adquirida num alfarrabista do Porto. Ele tem um poema em que fala dos sinos que tocaram quando eu fui baptizado; vou lê-lo. Intitula-se “Tarde de Agosto” e data de 1944.
Domingo. O sol molesta,
Incendeia o horizonte.
Tocam sinos à festa
Em S. Pedro do Monte.

Num ramo de giesta
Canta um melro defronte.
É poeta: manifesta
O estro de Anacreonte.

Nos fios telefónicos
Andorinhas baloiçam...
Outras cruzam pelo ar.

E risonhos, harmónicos,
Os sinos de há pouco – oiçam! –
Repicam sem cessar.
S. Pedro do Monte é o nome antigo da minha terra; Anacreonte foi um poeta da Grécia clássica.
Matias Lima, como o P.e Meira Veloso de que já aqui falei, segue frequentemente uma poética de raiz parnasiana, objectivista, pouco lírica. É assim neste sonetilho.
No seu tempo, este poeta devia ser considerado um cidadão modelar. Não era uma pessoa muito criativa, soube agradar e teve êxito social e até cultural. Como autor de poesia, não conseguiu audiência significativa.
Falho de inspiração propriamente poética, a meu ver, muitas vezes versificou por sugestão da paisagem, sobre locais que visitava ou em que vivia. Vou ler o seu poema Recordando, que fala dos pescadores poveiros de outros tempos.
Relembro as lindas tardes de poesia
Passadas docemente à beira-mar;
Passadas na amorável companhia
Dos bons poveiros, corações sem par.

A minha vida triste, ao sol sem manchas,
Foi bela! O mar regia a sua orquestra.
Com os poveiros encostados às lanchas,
Eu me entretinha em fraternal palestra.

De quando em quando ouvia aos mais idosos
Narrações de trabalhos singulares:
Inclemências, naufrágios pavorosos
Que levavam o luto a tantos lares!

Quanta vez comparava a sua lida
Com a dos Poetas! Uns, do mar profundo
Extraindo alimento para a Vida...
Outros, da alma febril, luz para o Mundo!

Uns, engolfados nesse mar fatal;
Outros, por infortúnios perseguidos,
Nautas da Dor no pélago do Ideal!
Tanta vez soçobrados e vencidos!

***

É doce recordar, chorando e rindo,
Momentos de ventura, passageiros.
Ai, que saudades desse mar tão lindo!
Ai, que saudades desses bons poveiros!
Matias Lima fala noutros poemas da Póvoa, mas o soneto que se segue recorda o Convento de Santa Clara de Vila do Conde em 1912, então convertido em prisão…
Com que saudade intensa e verdadeira
Olho para essas grades! Faz-me mal
Pensar que ali passou a ideal
Silhouette de tanta linda freira!

Ao forte guizalhar duma liteira,
Ai, quanta vez a porta principal
Desse convento, abriu-se maternal
A receber mais uma companheira!

Essas freirinhas já todas lá vão...
No túmulo fizeram sua cela
E esse convento se tornou prisão.

Vêem-se agora às grades da janela
Os presos a seguir com distracção
O passo militar da sentinela!

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Moisés


Vou falar de Moisés ou pelo menos a propósito de Moisés, o Moisés bíblico.
E começo por considerar a semana. Os Gregos e os Romanos não conheceram a semana, não tinham essa instituição que manda que se trabalhe durante seis dias e se descanse no sétimo, o que nos parece coisa tão natural. Em termos práticos, a semana foi criada por Moisés, que mandou ao povo de Israel que trabalhasse seis dias e no último descansasse e prestasse culto ao seu Deus.
A semana já era conhecida na civilização babilónia e tem origem física, astronómica, nas fases da Lua. Mas chegou ao nosso mundo ocidental através do cristianismo, que a recebeu do judaísmo.
Os nomes dos dias da semana em português são um caso único na Europa e talvez no mundo. Em espanhol, em italiano, em francês, em inglês e em alemão, pelo menos, esses nomes ainda conservam designações de origem pagã. São o dia do Sol, o dia da Lua, de Marte, etc. Em português, à parte o domingo, que é literalmente o dia do Senhor, e o sábado, que conserva o nome judaico, todos os outros são apenas feiras: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. É conhecido um santo, que foi arcebispo de Braga, que se bateu por retirar dos dias da semana os nomes dos deuses pagãos … Um dia espero falar dele.
O mundo ocidental, de base cristã, é monoteísta. O mundo islâmico também. Mas esses monoteísmos radicam ambos na lei de Moisés, sobretudo no primeiro mandamento dado no Sinai: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto”.
Ao longo da história de Israel o politeísmo dos países envolventes foi sempre uma tentação, mas sempre os profetas levantaram a sua voz na defesa do monoteísmo aprendido no Sinai.
No Egipto antigo, anterior a Moisés, já tinha havido uma experiência monoteísta, com o faraó Akénaton. O nome deste faraó não é o seu nome de origem: ele alterou-o em função do novo credo que impôs ao país.
Mas o monoteísmo de Akénaton era ainda idólatra, adorava o Sol ou o disco solar. O monoteísmo mosaico, de Moisés, exclui qualquer representação da divindade, qualquer idolatria. Isto é um avanço enorme: basta considerar o que se passou na Grécia ou em Roma. O povo israelita continuamente será tentado para a idolatria, para a adoração de um deus concretizado em imagens. Mas também os profetas continuamente apelarão para um monoteísmo ao modo do proposto por Moisés, sem imagens, em que o Criador não pode ser representado por qualquer ídolo.
No templo de Jerusalém, o Santo dos Santos era um espaço vazio. Ora era no espaço correspondente a esse que nos templos pagãos estava a estátua do deus, qualquer que ele fosse, qualquer que fosse o nome que se lhe atribuísse.
Os livros bíblicos que falam de Moisés são variados, mas o mais conhecido é o Êxodo, cujo título evoca a saída do Egipto. De facto, esse e os outros livros próximos, o Deuteronómio, o Levítico e os Números, falam da libertação dos Israelitas, da sua elevação a povo livre, da aliança de Deus com esse povo, etc.
Esses livros colocam-nos perante factos que têm a ver com o conceito original de epopeia. A epopeia é uma história antiga, mais ou menos lendária, que conta a formação de um povo, protegido pelos seus deuses ou pelo seu Deus. Figuram nela os grandes heróis nacionais, dotados de coragem, de determinação, de força exemplares, que beneficiaram da protecção divina. Lembrá-los é avivar o sentimento patriótico e a protecção que continua a ser dispensada a esse povo.
Nesta perspectiva, Moisés é o protagonista humano duma epopeia: liberta o povo oprimido pela maior potência então conhecida, dá-lhe uma lei para o reger, e Deus estabelece com esse povo uma aliança não só inabalável, mas projectada para o futuro.
E isto apesar das limitações dos homens, que repetidamente fraquejam; até Moisés. Este é um aspecto realista, de verdade humana que não deve ser ignorado pelo leitor do Êxodo.
Moisés afinal está muito mais próximo de nós do que pensaríamos: está no nosso sábado, no nosso domingo, nos outros dias da semana, no nosso modo de olhar o mundo, até próximo dum poema como Os Lusíadas.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Paio Peres Correia

Proponho-me falar hoje dum livro em espanhol que adquiri há poucas semanas. Foi publicado em Badajoz e o seu título reza assim: Pelay Pérez Correa. Historia y leyenda de un maestre santiaguista. É seu autor Manuel López Fernández. Pelay Pérez Correa é um tal Paio Peres Correia a que já me tenho referido. No seu século, o XIII, talvez não tenha havido nenhum homem na península, à parte algum rei ou santo, tão prestigiado como ele.
Se o autor do livro é natural da província onde os restos mortais de Paio Peres Correia estão sepultados, eu considero-me natural da terra onde ele nasceu. Paio Peres Correia é contemporâneo de Pedro Hispano, o português que foi o Papa João XXI durante alguns meses, e em parte contemporâneo também de Santo António.
Não há que lamentar que o autor do livro seja espanhol, pois Paio Peres Correia, que teve um papel relevante em Portugal, teve-o o ainda muito mais relevante em Castela.
Na Internet há uma recensão sobre esta obra, que vou passar a acompanhar com alguma liberdade.
O livro começa com um breve estudo sobre as origens da Cavalaria de Santiago para entrar rapidamente em aspectos pessoais do Mestre e na sua evolução dentro da instituição santiaguista.
Estudam-se com pormenor as suas actuações na Reconquista e mais à frente analisa-se a actuação política de Peres Correia junto de reis como Fernando III e Afonso X de Castela, Jaime I de Aragão, Afonso III de Portugal, ou  para com Henrique III de Inglaterra e o imperador Balduíno de Constantinopla em assuntos relacionados com as Cruzadas. Passa-se imediatamente a conhecer a relação do Mestre com a Santa Sé, com os dirigentes da igreja peninsular e com as outras ordens militares.
Vindo aos assuntos internos da Ordem,   estuda-se  a expansão territorial dos santiaguistas em tempos de Peres Correia, assim como a sua faceta legisladora e povoadora, para mergulhar logo a seguir nas vicissitudes ocorridas no seio da instituição durante o governo do Mestre. No capítulo final, segue-se o rasto de D. Paio  pela historiografia peninsular, impulsionado por ventos lendários mais que pelos seus êxitos temporais.
Por último acrescentam-se três apêndices: um documental, outro dedicado ao itinerário de Paio Peres Correia e o último deles para assinalar os principais comendadores e comendas da Ordem naqueles tempos.
Numa outra página também da Internet, Manuel López Fernández escreve: “O mestre Pelay Pérez Correa, como se chama nos documentos castelhanos, parece originário de Farelães, um couto próximo da cidade portuguesa de Braga”.
Acho isto muito pouco. O solar dos Correias não se chama de Farelães, mas de Fralães, não está longe de Braga, mas está mais perto de Barcelos, etc. Em vez de couto, era mais correcto falar de honra. Quanto à naturalidade do biografado, numa tese de doutoramento dever-se-ia ser um pouco mais exigente.
A capa do livro foi pensada a partir de iconografia portuguesa, em concreto, de uma pintura do MNAA a que se sobrepôs um retrato setecentista de Paio Peres Correia. A pintura, originária de Palmela, onde a Ordem de Santiago teve importante convento, representa uma suposta aparição de Nossa Senhora a Paio Peres Correia.
Em Paio Pires, no Seixal, ergueram uma estátua em tamanho um pouco mais que o natural, inspirada no retrato setecentista de Paio Peres Correia que agora mencionei. Dizem lá que Paio Pires é de facto Paio Peres Correia. Também em Setúbal há um monumento recente ao Mestre de Santiago.
A iconografia de Paio Peres Correia é mais abundante na Espanha. Na Praça Maior de Salamanca há um vistoso medalhão a representá-lo. Em Leão, na fachada dum convento, há um outro. Em Tentudia, onde a lenda colocou um milagre de dimensão bíblica, conseguido a pedido de Paio Peres Correia, num mosteiro desactivado, há um painel de azulejo quinhentista que o representa. Mas conhecem-se outras representações icónicas.
Hoje em dia cresce o interesse por esta figura medieval, motivado pelas jornadas sobre Ordens Militares que se têm repetido (ou pelo menos repetiram) em Alcácer do Sal, onde Paio Peres Correia iniciou a sua vida de cavaleiro de Santiago.
Recordo que no concelho da Póvoa de Varzim os documentos assinalam a presença de parentes deste cavaleiro medieval; é o caso da Aguçadoura e Balasar. A presença do pai em Balasar é particularmente importante.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma página de Camilo e a romagem a Santiago de Compostela


Há um livro de Camilo, A Filha do Arcediago, que conta um episódio passado em S. Simão da Junqueira, em Casal de Pedro. Não é coisa recomendável, mas decorre lá, numa estalagem depois conhecida como a Estalagem das Pulgas. Essa estalagem ficava à margem dum caminho de Santiago.
Começo então por falar da romagem a Santiago.
Eu passo os períodos de férias nas proximidades da Junqueira e de Bagunte. Isso permite-me testemunhar o que é ainda hoje a romagem a Santiago de Compostela naquelas paragens: é muito frequente, ao menos no Verão, ver passar romeiros, isolados ou em pequenos grupos. Há uma Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago cujo site fornece circunstanciada informação a estes peregrinos.
A romagem de sentido religioso é antiga: no mundo bíblico são conhecidas as subidas a Jerusalém; no mundo pagão, o santuário grego de Delfos era destino de muita romagem; no cristianismo foi vulgar a peregrinação quer aos lugares santos bíblicos quer a Roma, aos túmulos dos Apóstolos.
A romagem a Santiago também é antiga, mas não pode ter muito mais que uns mil anos, uma vez que a aleagda descoberta do túmulo do apóstolo remonta ao início do séc. IX. Mas terá sido ela que levou à criação duma série de mosteiros à margem do caminho de Santiago não longe de nós: talvez Leça do Balio, certamente o Mosteiro de Moreira, na Maia, o de Vairão, o de S. Simão da Junqueira e o de Rates. A própria Ponte d’Ave, que vem do início do séc. XIII, terá débito a esse fluxo de romagem.
Eu não conheço quase nada sobre os documentos antigos dos mosteiros que acabei de mencionar, com excepção do da Junqueira. É curioso que nos deste se fale de “lugar santo”. Certa doação é feita “ao lugar dos Santos Apóstolos Simão e Judas e outras relíquias que aqui se conservam”. Com bastante clareza, estava-se a pretender promover o mosteiro como destino de romagem.
Venhamos agora à página de Camilo. A narrativa fala dum homem em viagem que se acolhe à estalagem de Casal de Pedro, mas que é perseguido pela justiça e traz consigo uma amante. À noite, a polícia aparece e, muito ao modo camiliano, ocorre na estalagem uma mortandade: morrem dois polícias e a amante do fugitivo. Este contudo consegue escapar-se.
O episódio permite ao autor recordar tempos em que pernoitou na mesma estalagem, com certeza aquando da Maria da Fonte e da Patuleia. Mais vale ouvi-lo:
Nesse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas netas eu encontrei trinta anos depois, pulgas enormes e ferozes, que arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exaurem as artérias dum sangue azedado pelo maldito vinho, que a estalajadeira vos ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mezinha para matar as bichas dos pequenos.
Pernoitei aí uma vez na minha vida. Compreendi, no quarto que me deram, os suplícios do cristão primitivo atirado ao circo. «Cristão às pulgas!» deveria ser, no império romano, um grito de prazer para o paganismo sanguinário, como o fatal «Cristão às feras!»
[…]
Nesse mesmo quarto, às duas horas da noite, também o senhor Augusto Leite recebeu uma inesperada visita; […]. Eram oito soldados de cavalaria, comandados por aquele estúrdio cadete, que o leitor conhece, e reforçados por alguns meirinhos do corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças”.
Ocorre depois a mortandade que já referi. Conta depois Camilo:
Os três cadáveres foram enterrados no adro da igreja paroquial, porque o vigário duvidou sepultá-los em sagrado, visto que não traziam sinal de cristãos, como cruz, nóminas, bentinhos, verónicas ou outro qualquer distintivo da fé católica.
A seguir o escritor faz a “relação das pessoas que já morreram neste romance”, a saber: o mestre de latim, a senhora Escolástica, o arcediago, uma velha da viela do Cirne cujo nome me não lembra, o senhor António José da Silva, Antónia Brites, amante de Augusto Leite, dois soldados de cavalaria. Soma total: 8.
E avisa em tom de muito mau gosto: “Continuarão a morrer convenientemente”.
Também ele havia de morrer à lei da violência, muito inconvenientemente.
E fico por aqui, com estas frases de Camilo e com alguma notícia da romagem actual a S. Tiago de Compostela.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Democracia republicana

Como há dias se celebrou o 5 de Outubro, vou hoje dar conta de dois acontecimentos de há 100 anos atrás, um de princípios de Agosto, outro de fins de Julho.
Os ouvintes estarão lembrados que eu tive alguma intervenção local na comemoração do centenário da República, uma intervenção crítica, como me parecia que era oportuno. O tema era para mim de especial importância por implicar com a infância da pequena que é hoje a Beata Alexandrina. Evoquei por isso factos graves, da responsabilidade dos fanáticos do novo regime. Mas o centenário dos mais desses factos ainda está a decorrer ou vem a caminho, pois tiveram lugar em 1911 ou 1912. O primeiro dos dois acontecimentos que vou evocar tem a ver com arrolamento dos bens das paróquias.
A República pretendia acabar com a Igreja e tomou gravosas medidas no sentido de alcançar este objectivo, como, entre outras, tentar privar os párocos de qualquer rendimento económico, para os dominar pela penúria.
Nos meus apontamentos anteriores, falei das igrejas pequeninas e antigas. A sua construção, manutenção e actualização foram tarefas custosíssimas para aquelas comunidades de tão poucos recursos. Mas era lá que praticavam os actos mais importantes da vida, como o baptizado, o casamento, e que finalmente eram sepultados, ou no seu adro. Ora a República, tiranicamente, sem apelo, nacionalizou-as todas.
Há um ano atrás, eu não conhecia nenhum dos documentos concretos dessas nacionalizações, os chamados arrolamentos. Hoje conheço um, o único que subsiste no concelho da Póvoa, creio eu, e que é o de Terroso. Começa assim:
Aos oito dias do mês de agosto do ano de 1911, nesta freguesia de Terroso, estando presentes os membros que compõem a comissão concelhia de inventário, senhores António dos Santos Graça, administrador e presidente, Mário da Silva Monteiro, servindo de secretário de finanças, e Domingos António Vieira da Silva, presidente da comissão paroquial respectiva, a fim de, de harmonia com o artigo sessenta e dois da Lei da Separação, se proceder ao arrolamento dos bens pertencentes às igrejas, como fez, principiando pela forma seguinte:
Nº 1, bens imobiliários […].
Uma vez uma poveira referia-se a Santos Graça, com alguma ironia, como o democrata. Que democracia havia num acto destes? Não estava aqui a usurpação mais vil dum direito elementar?
E ele não vinha como funcionário que se limita a cumprir o que a autoridade lhe manda. Não, ele, como o documento afirma, era a autoridade, o administrador do concelho, um cargo que assumiu voluntariamente. Foi ele que levou a tribunal quatro vezes o jornal O Poveiro, foi ele que o censurou, que finalmente o silenciou e que expulsou o Prior da Póvoa.
A tirania dos arrolamentos era execrável. Mas num caso como o de Balasar então enchia as medidas. A igreja entrara ao culto no final de 1909, ainda inacabada, paga pelo povo da freguesia. Pois neste momento, ainda a cheirar a tinta, era nacionalizada.
Veja-se agora o que se tinha passado no Outeiro Maior uma semana antes da ida de Santos Graça a Terroso. Na pequena freguesia celebrava-se uma participada festa ao Coração de Jesus. No dia, de manhã, houvera comunhão geral e, de tarde, realizara-se uma procissão em honra do SS. Sacramento. Passo a ler uma notícia saída no semanário O Poveiro, o tal que era protegido pelo Prior.
Como que a pôr um embargo à alegria que todos sentiam no meio de tão linda e religiosa festividade, por ser a única que agrada e consola o coração do verdadeiro cristão e está no ânimo de todos os habitantes desta freguesia, apareceu um ofício do cidadão Administrador do Concelho de Vila do Conde, com a nota de “urgente”, que ao conhecer-se produziu o efeito de um frigidíssimo duche. Dizia assim:
Tendo conhecimento de que nessa freguesia se costuma anualmente fazer umas práticas e confissões, sob a denominação de Coração de Jesus, tenho a dizer-lhe que tais práticas são proibidas e punidas por lei. Queira pois não consentir e participar-me, caso não sejam acatadas as minhas ordens. Saúde e fraternidade.
Ao cidadão regedor da freguesia de Outeiro.
Vila do Conde, 27 de Julho de 1911.
O Administrador do Concelho – Luís da Silva Neves.
Que desastrado fervor republicano o dos administradores destes dois concelhos vizinhos! Então era “proibido e punido por lei” celebrar uma festa em honra do Sagrado Coração de Jesus?

sábado, 24 de setembro de 2011

Igrejas antigas - conclusão

Regresso hoje ao tema das igrejas pequeninas e antigas. Às três de que já falei, Santagões, Ferreiró e Parada, acrescento agora mais três: Formariz, Rio Mau e Laundos.
Aparentemente, construíram-se nesses tempos recuados dois tipos de igrejas: umas, a maior parte, muito simples, constituídas apenas por um pequeno edifício quadrangular, utilitário, porventura coberto a colmo, e outras com manifesto investimento artístico, como foi o caso de Rio Mau, Amorim e Rates, talvez a Junqueira.
As guerras, a princípio, e as sucessivas pestes limitaram o crescimento demográfico, tornando desnecessárias as ampliações. Mas é de supor que, no século XVI, elas se tenham iniciado, a ponto de não ter chegado até nós nenhuma ou quase nenhuma nas suas dimensões originais. Apesar de tudo, há algumas que são tão pequeninas que não devem estar muito longe do que foi o seu início.
A antiga igreja paroquial de Formariz é muito pequena e, visto a freguesia ter sido anexada já há séculos a Touguinha (antes de passar para Vila do Conde), terá parado no tempo. Possui algumas raridades, desde a imagem medieval do padroeiro à cruz processional e pia baptismal quinhentistas. Não tem campanário propriamente dito, apenas um sinozinho.
No concelho da Póvoa, interessou-me particularmente a igreja paroquial de Laundos, que não conhecia. Sofreu certamente ampliações relativamente à de origem, mas continua pequenina e muito simples. No interior, talvez há uns cem anos, substituíram uma talha antiga pela actual. A sua torre é um caso raro. É parecida com a de Rates, mas diferente ainda assim, pois não se encosta a nada. Segue um modelo que há-de ter sido muito comum e que aos poucos foi desaparecendo. O Mons. Manuel Amorim chama-lhe “um típico campanário setecentista”; remonta todavia apenas ao século seguinte, como escreveu um recente pároco local.
A igreja velha de Rio Mau, que foi ampliada no séc. XIV, ocupa o mesmo lugar e não deve ser muito diferente da de origem. Mas essa era uma igreja de mosteiro, por isso, mais artística. Notáveis algumas invulgares figuras em relevo nos tímpanos das portas e as arcas tumulares medievais no adro. É curiosa a torre, muito recente, sobre a porta do cemitério.
Deixando agora as  igrejas a que me referi atrás, a velha de Amorim tem uma história bem particular, bem se sabe, pois sofreu reconstrução em finais do séc. XVI, para o estilo maneirista. Mas como sobrevive lá uma cachorrada românica, ela deve dar uma indicação bastante precisa sobre o comprimento do pequeno templo original.
Esta igreja tem três naves, separadas por colunas; a sua talha é a mais antiga das vizinhanças. Entre outras curiosidades, há lá uma pintura de S. Tiago, de um pintor poveiro que assinou apenas por Lino; datou o seu trabalho de 1872. Quem quer que ele fosse, devia-se valorizar o homem, procurar outras eventuais produções suas. A torre é quadrangular, ao jeito moderno.
Há notícia de outras igrejas antigas que foram demolidas. O caso de Balasar é muito especial, já que houve na freguesia várias igrejas que hoje não existem mais: primeiro houve as de Gresufes e Lousadelo, que inteiramente despareceram; depois houve a do Casal, que também coexistiu com a de Gresufes. No século XVI, foi construída a do Matinho, que foi radicalmente alterada no séc. XVIII, sendo demolida aquando da construção da actual. A do Casal, que era medieval, foi demolida apenas em 1919. Devia ser muito pequena, pois as pessoas referem-se a ela apenas como capela. Se se conservasse, podia ser um testemunho sobre as dimensões das igrejas antigas.
Na Póvoa desapareceu a antiga ermida gótica e a anterior igreja da Misericórdia; em Vila do Conde foi demolida no século XVI a matriz primitiva. Uma outra que se sabe que foi demolida foi a de Touguinhó. No Outeiro Maior conserva-se ainda a anterior, muito antiga, mas com certeza repetidamente modificada e ampliada.
Quando a gente vê estas igrejas tão singelas e antigas e pensa que os caminhos de então eram veredas miseráveis, com troços intransitáveis em parte do inverno, que a área cultivada do mundo rural era muito mais pequena que a actual, percebe como a vida terá então sido de penosa subsistência, percebe melhor o esforço das comunidades de então para manterem os seus pequenos templos.
Verdadeiramente, isto leva-nos para um mundo, em relação ao qual sabemos muito pouco, só coisas vagas.

sábado, 10 de setembro de 2011

Igrejas antigas

No nosso arciprestado existem igrejas que são monumentos nacionais, igrejas monumentais mas não classificadas como monumentos nacionais, igrejas mais comuns e algumas igrejas muito humildes, muito simples e muito antigas também.
No mês de agosto, visitei algumas destas últimas, aquelas que poucos visitam e provavelmente muitos desconhecem. Hoje vou falar de três: da de Santagões, actualmente despromovida a capela mas que foi paroquial durante talvez sete séculos, da de Ferreiró, muito antiga também e que já foi um pardieiro cheio de silvas mas que depois foi restaurada, e da de Parada, ultimamente em reconstrução.
Estas três igrejas têm a particularidade de ficar todas na margem norte do Ave, próximas do rio.
Começo pela de Parada. Caso raro, certamente raríssimo, conhece-se a data da sua construção: ano de 952. O ano anterior ao primeiro documento que menciona pela primeira vez Vila do Conde e Via de Varzim. Esta data será aproximadamente a mesma das da maior parte das igrejas das freguesias do arciprestado, ficando de fora as paróquias criadas mais tarde, como a da Póvoa de Varzim, depois dividida em três; a de Aver-o-Mar, que se separou de Amorim; a da Aguçadoura, que se integrava em Nabais, e as Caxinas, que antes eram Vila do Conde. De facto, sabe-se que a maior parte das antigas já existiam em 1090. Embora o cristianismo já vigorasse por cá desde há muito, a organização paroquial como a conhecemos remonta a tempos posteriores à Reconquista.
Em 1090, Parada pagava anualmente ao Arcebispo um jantar ou certamente o equivalente em dinheiro ou géneros. Ora o nome Parada creio que designa mesmo a paragem para essa refeição. Na altura, talvez a paróquia fosse maior, para o que bastava que ainda não tivessem sido criadas as suas vizinhas. A verdade é que no tal documento de 952 chega-se a falar de baseliga, sem dúvida basílica, a propósito da igreja de Parada, o que poderá significar que ela fosse apenas um pouco maior que outras vizinhas ou nem isso, pois o significado das palavras varia muito ao longo do tempo.
A origem da pequena igreja da vizinha freguesia de Ferreiró deverá ser bem diferente. Enquanto na Vila de Parada a construção se deveu aos moradores, com algumas probabilidades, em Ferreiró, ela foi construção de algum nobre.
Por ocasião das Inquirições de 1220, regista-se, a propósito de Ferreiró, que juraram oito homens, incluído neste número o abade, e que não havia mais, excepto dois que estavam doentes. Esta informação coaduna-se bem quer com a pequenez da igreja quer com o que se conhece dos registos paroquiais, que nos dão a freguesia como muito pouco populosa. Por volta de 1900, escreveu-se sobre a igreja de Ferreiró o seguinte: "O seu aspecto é dos mais primitivos e singelos, sem torre nem galilé ou alpendre; não obstante, o pequeno âmbito deste pobre templo chegou de sobra para abrigar os fregueses durante as cerimónias de culto e para necrotério dos antepassados".
Esta igreja fica no centro dum descampado, que era o grande passal do abade local. O facto de a igreja ficar nesse descampado e no centro do passal, de a residência ser espaçosa e porventura ainda o facto de o pároco ter o título de abade, tudo poderá indicar que houve o cuidado obstar a que ele passasse penúria. Ora isto indiciará que andou por ali mão de gente abastada, nobre.
Na segunda metade do século XIX, houve um natural de Ferreiró que ascendeu a visconde, o Visconde de Santa Marinha da Trindade. Santa Marinha é a padroeira da freguesa e a palavra Trindade envia para uma capela local que ele ampliou a ponto de ficar muito mais espaçosa e rica que a igreja paroquial. Desde então, na prática a capela da Trindade ascendeu a paroquial e a pequena igreja paroquial caiu em ruína até ser recuperada há algumas dezenas de anos.
A igreja de Ferreiró tem um retábulo de talha no altar-mor. Poderá ser uma imitação recente de algo antigo, em pretenso estilo de talha nacional. Nas memórias paroquiais afirma-se implicitamente que a imagem da padroeira se encontra ao centro e que dos lados estavam imagens de S. António e de S. Francisco Xavier. Actualmente, a imagem da padroeira está ao lado e ao centro vê-se uma tela heterogénea, onde o primeiro lugar é ocupado por uma Nossa Senhora com a espada apontada ao coração, ao fundo representa-se um Purgatório e há ainda lugar para um S. Lourenço.
Em Santagões o retábulo, embora deva ter sofrido um grande restauro, aponta para uma composição que pode ter sido maneirista na origem. Ao fundo há como que uma base em toda a largura, ao centro está dividido em três secções verticais separadas por colunas e por cima há ainda como que um muito esbatido frontão. Na parte central vêem-se pinturas de dois anjos com instrumentos da crucifixão e ao cimo, numa outra pequena pintura, representa-se provavelmente S. Escolástica, irmã de S. Bento, a lembrar que a igreja tinha estreita ligação ao Mosteiro beneditino de Vairão.
Todas estas três igrejas são pequenas, todas são muito antigas, em nenhuma houve grande investimento artístico. A que faz melhor figura ainda é a de Santagões.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Leonardo Coimbra

Vou falar de Leonardo Coimbra, um filósofo português das primeiras décadas do séc. XX, que viveu algum tempo na Póvoa.

Como é tema sobre que sei muito pouco, vou-me limitar a generalidades e citações. Mas justifica-se a abordagem.

Faz este ano 75 anos que ele morreu. Ele tinha nascido em Borba de Godim, na vila da Lixa, em 30 de Dezembro de 1883 e veio a falecer no Porto a 2 de Janeiro de 1936. Ensinou alguns anos no Liceu da Póvoa, o que está documentado na imprensa poveira e no arquivo desta escola. Além disso, datou o prefácio dum livro da Quinta de Balasar. Eu penso que, ao tempo da República, o dono dessa quinta, a chamada Quinta de D. Benta, era um decidido republicano, isto é, democrático – segundo abusivo sentido que então se dava à palavra. Era por conseguinte correligionário de Santos Graça, que foi quem trouxe Leonardo Coimbra para o Liceu.

Os 75 anos da morte de Leonardo Coimbra foram-me lembrados por um artigo saído em 8 de Junho no Diário do Minho, da autoria do Prof. Dr. José Gama. Recentemente também, o meu colega Antero Simões publicou um livro sobre este filósofo; foi estudado por vários autores no Boletim Cultural. Lembro ainda que a rua em frente ao liceu se chama Rua de Leonardo Coimbra.

Segundo o artigo de José Gama, pela profundidade e originalidade do seu pensamento, Leonardo Coimbra é considerado “como dos mais importantes, senão o mais importante entre os nossos pensadores do séc. XX”. A dada altura o autor delineia o plano do seu trabalho, o que dá alguma luz sobre os sentidos da obra do filósofo. Escreve ele:

“O pensamento filosófico de Leonardo Coimbra está bastante estudado, felizmente, em obras de grande profundidade, parti­cularmente nos diversos traba­lhos de investigação tema­ticamente orientados, para além dos inúmeros textos mais reduzidos de artigos e comuni­cações, nas mais variadas cir­cunstâncias. Não pretendo aqui, de modo algum, fazer qualquer síntese científica, a partir desses estudos nem ter a pretensão de dar uma visão aproximada ou aproximativa da filosofia e do sistema criacionista do autor. Tendo presente a perspectiva do significado da actualidade do pensamento de Leonardo Coimbra procurarei comentar inicialmente a sua dimensão filosófica e artística, deixando para um segundo passo a sua dimensão especificamente portuguesa”.

Depois, o plano é naturalmente desenvolvido.

Ouçamos algumas palavras do prefácio escrito em Balasar, que se destinava à edição portuguesa, saída em Lisboa, no Porto e no Rio de Janeiro, do importante livro de Platão intitulado Fédon; o pensador concluía assim o seu arrazoado:

“Ler Platão é cantar, sorrir, vogar em Beleza!

Que a nossa mocidade o leia, há-de sentir o peito alteado de orgulho, a fisionomia animada e forte, expressão dum íntimo movimento harmonioso e contente, que é o próprio bulício das asas da Alegria dentro do coração desperto.

Teorias de efebos, cantando o eterno triunfo da Aurora…

Quinta de Balasar, 1-9-18”.

Nestas frases nota-se o pendor poético da escrita de Leonardo Coimbra, assinalado por José Gama. Um pensador assim pode ir muito longe, como o aludido Platão, mas não brilhará propriamente como sistematizador. Antero Simões transcreve passos de Leonardo Coimbra em que ele fala, com uma enorme admiração, do Patrão Lagoa e do Cego do Maio.

Leonardo Coimbra, que se tinha afastado do catolicismo, regressou depois a ele. Veja-se como uma vez falou da última Ceia de Jesus:

"Jesus é a Bondade. É, por isso, a dádiva pura e integral. Vai dar-se para dar a sua vida infinita às pobres almas dormentes. Mas antes, deseja ainda com um grande amor passar uma Páscoa com os seus. E, nessa Ceia, que Leonardo da Vinci encheu dum infinito azul dum Céu aberto, é todo enternecimento dadivoso para com as pobres almas, que, por momentos, irão tremer, vacilando às ventanias da Paixão.

Acabada a Ceia, tomando em seu peito, aberto em imensa chaga piedosa, todo o sofrimento humano, vai à herdade de Getsémani dar-se ao mais formidável Vendaval de Dor, que jamais acoitou um coração…”

Fico por aqui. Deixo ao menos lembrado um nome importante da cultura portuguesa cuja vida teve inolvidáveis momentos passados na Póvoa de Varzim.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Para o Dia de Camões


Como ainda estamos próximos do Dia de Camões, vou falar deste poeta; em concreto, da sua canção X, a que começa Junto de um seco, fero e estéril monte.
Camões estava então, aí por 1560, na costa da África Oriental, junto a território da actual Somália, na entrada do estreito que liga o Oceano Índico ao Mar Vermelho. O lugar era um ponto sensível, como aliás também o é hoje. Na altura, o controlo da entrada desse estreito possibilitava aos Portugueses dominar o comércio que vinha pelo mar desde a Índia, China ou Japão. O poeta estava ali em serviço militar, mas, se menciona os horrores do lugar, não menciona a actividade em que estava envolvido. Começa assim:

Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido;
onde nem ave voa ou fera dorme,
nem rio claro corre ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído; […]

E mais à frente conclui a frase:

Aqui, no mar, que quer apressurado
entrar pela garganta deste braço,
me trouxe um tempo e teve
minha fera ventura.

O mar “quer apressurado / entrar pela garganta deste braço” certamente por o Mar Vermelho ser rodeado de terras áridas, o que provocará grande evaporação, causando um contínuo fluxo de água ida do Índico.
Depois o poeta prossegue:

Aqui, nesta remota, áspera e dura
parte do mundo, quis que a vida breve
também de si deixasse um breve espaço,
porque ficasse a vida
pelo mundo em pedaços repartida.

Num país de emigração como tradicionalmente foi o nosso, muitas vidas ficaram pelo mundo em pedaços repartidas, ao modo da de Camões. Mas devia ser uma experiência dolorosíssima, sobretudo quando uma carta só podia ter resposta meio ano ou mais depois.
Continuemos a ouvir as queixas do poeta:

Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e d'ira cheios,
não tendo tão somente por contrários
a vida, o sol ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios,
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria natureza;
também vi contra mi,
trazendo-me à memória,
algüa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.

Por comparação com os sonetos, uma canção como esta alia o tema amoroso ao do continuado infortúnio do poeta. Comum aos dois temas é a expressão sempre vigorosa, vivida que o poeta põe no que escreve. A poesia do encantamento amoroso ou as queixas contra o desconcerto do mundo têm raiz na vida do autor; por isso têm tanto sentido de coisa experimentada, não de ficção literária.
Passemos à estrofe seguinte:

Aqui estiv'eu com estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas, que caía
(e vede se seria leve o salto!)
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar, e nuns suspiros
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna;
soberba, inexorável e importuna.

Esta desesperante situação do poeta é curiosamente idêntica à do Adamastor, o gigante que ameaçava a navegação portuguesa no Cabo dito da Boa Esperança: ambos frente ao mar, rodeados de um meio agreste, ambos remoendo um amor fracassado, ambos em fúria.
A Canção X é extensa, mas não vou ler mais versos dela. A propósito destas dramáticas, doridas queixas, vou concluir com a leitura dum também vigoroso soneto de Camões; diz assim:

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das coisas que passaram
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Os dois versos finais parecem do Adamastor...
Tiremos ao menos disto que a poesia do nosso maior poeta brotou duma experiência muito dolorosa. Nós dedicamos-lhe um dia, como a um santo; convém que saibamos que ele passou muito: a sua vida ficou “pelo mundo em pedaços repartida”. Aprendê-lo também é comemorar o seu dia.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

MEIRA VELOSO



Há cem anos atrás havia na Póvoa sobretudo três homens que se dedicavam a fazer versos: o P.e António Martins de Faria, Bernardino da Ponte e o P.e José Meira Veloso. O mais original dos três era o também mais novo, o P.e Meira Veloso, único de quem não existe publicado qualquer livro de poemas. O P.e Meira Veloso nasceu na Póvoa de Varzim e cá viveu muito tempo, mas chegou a emigrar para o Brasil, onde ensinou línguas e filosofia. Na Póvoa, foi professor no Colégio Povoense, capelão da Misericórdia, além de se dedicar ao jornalismo e à poesia.  Esteve na origem do escutismo local, juntamente com o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, o Prof. José Luís Ferreira e o P.e Aurélio de Faria. Foi pároco de Modivas e Aveleda, em Vila do Conde, e ainda de Paços de Ferreira. Faleceu de tuberculose com 52 anos, em Fevereiro 1934. Na altura, o Idea Nova (10/2/34) escreveu sobre ele uma notícia muito elogiosa, sugerindo primeiro que morreu como um santo e analisando depois a sua obra literária. Veja-se o que lá se disse sobre esta:

Realmente a sua poesia era de raiz parnasiana, isto é, anti-romântica, objectiva, muitas vezes narrativa. Isso permitia-lhe abordar temas bastante prosaicos, mas também muito variados. Vou ler aqui quatro dos seus poemas. O primeiro chama-se “Diletantismo”. Diletantismo é a atitude de quem quer desfrutar a vida, colhendo dela o melhor que ela oferece, mas sem nunca se comprometer com causas que obriguem a esforço. O poeta interpela um diletante.

DILETANTISMO

Tal como a Ciência, a Fé te inspira horror;
Andas cantando pois, aqui e ali,
A aparência formosa, a suave cor…
Um fraco, em suma. Tenho dó de ti.

Mas não proclames com sorrir perverso
Que a arte mais sublime de viver
É errar à superfície do Universo,
Sem destino, ao de leve, por prazer.

O diletante mais feliz que o crente?
Superior ao sábio e a toda a gente
Que procura a Verdade? Tu treslês!

Que ao certo nada saibas – grande mal!
Mas exaltar a dúvida por ideal…
É mais que cepticismo: é insensatez.

O segundo poema, intitulado “Exegese evangélica”, não é soneto e fala-nos de dois protestantes, um presbiterano e um metodista, que debatem sobre a interpretação de certo texto bíblico. A dada altura passam da interpretação teórica à aplicação prática.

EXEGESE EVANGÉLICA

Para Londres no rápido viajavam
Um presbiterano e um metodista.
E, com a Bíblia à vista,
Sobre um texto divino disputavam.

"Se na face direita alguém te bate,
Oferece-lhe a esquerda" era a lição
Que gerava a questão,
Já séria como o fumo de um combate.

O literal sentido preconiza,
Convicto, o metodista; o outro rejeita
A difícil receita;
E em vez de surdir luz, cresce a geriza.

Então, para apressar o desenlace,
Zás! o presbiterano no colega
Um bofetão pespega,
"Vamos", diz-lhe, "apresenta-me a outra face!"

Pronto! O sequaz da letra lhe obedece
E outro tapa recebe, desabrido;
Mas não se diz vencido:
O Evangelho ali está e o favorece.

"Com a mesma medida que empregares
Serás medido", cita. E tão do imo
Lhe torna o duplo mimo,
Que um canino lhe arranca e dois molares!

O terceiro poema é soneto e tem por título “Espíritos” e ridiculariza o espiritismo.

ESPÍRITOS

Duma vez, na sessão de espiritismo,
Lembrou-se um pobre pai de perguntar:
- Meu filho, que em Coimbra anda a estudar,
Ficará bem no exame? Nisto eu cismo.

Depois de um certo espírito invocar,
O médio – o padre lá desse magismo –
Caiu num furibundo convulsismo
E, espumando, ladrou: - Sim! Vai ficar!

É chumbado o rapaz. Aceso em ira,
Larga o pai contra o vate: - Biltre imundo!
Que o rebento! Burlão! Voz da mentira!

E o médio volve então, com dó profundo:
- Não fui eu, meu senhor! A mim se vira?
Bata lá nessas almas do outro mundo!

Vou ler ainda um último soneto, agora em versos de 12 sílabas; tem por título “O quarto dos… sábios”. Não é muito recomendável, mas se a gente só lesse poemas recomendáveis, muitos sairiam de circulação. Há nele algumas frases em francês que eu traduzirei.

O QUARTO DOS… SÁBIOS

Ao desdobrar da noite um mendigo estrangeiro
Foi bater ao portal duma casa de aldeia.
Recebeu gasalhado e partilhou da ceia:
Comeu alarvemente! Bebeu como um sendeiro!

Já finda a refeição, começou-se a rezar;
E então o peregrino, em ânsias, descontente,
Maldisse as tradições daquela santa gente
E deu vivos sinais de querer descansar.

- Mais non! - E ergue-se audaz - Ce n’est pas ma croyance…
- Não quer ouvir rezar? – Moi, je suis de France! -
Apontaram-lhe o céu. – Pas de dieux! – e rugia.

- Joaquim! – ordena logo o patrão a um criado,
Leva já para o quarto este endemoninhado.
- Que quarto? – O dos ateus. Além, a estrebaria.

Há aqui um jogo entre a presunção do mendigo que se julga superior e o quarto que lhe é destinado, o dos cavalos.
Nem sempre é satírica a veia do P.e Veloso, mas usa uma linguagem concisa, realista, apostando em temas de manifesta actualidade, muitas vezes com impagável graça.

A sua obra anda dispersa por jornais e revistas da província, Lisboa e Porto, e pelo Brasil. Tinha concluídos dois livros de versos, em que mostrara especial predilecção pela sátira.
Colaborou em quase todos os jornais do seu tempo nesta vila, sendo sempre muito lidos, muito apreciados e muito elogiados os seus artigos e as suas poesias. Erros, vícios, maus costumes tinham-no pela frente em ataque ardoroso, impetuoso, invencível. A sua pena encontrava-se continuamente em riste para defender a Religião, a Pátria e a Póvoa.
Era uma sentinela vigilante no campo católico, pronto a defender a Igreja das investidas dos seus adversários. E fazia-o com a fé mais ardente.
A sua linguagem era erudita, impecável, brilhante. Estilo vivo, másculo, variado. Cultivava todas as modalidades. Desejava, estimava, provocava a polémica, em que saía sempre vencedor pelos argumentos que aduzia, pela forma que adoptava.
O jornalismo poveiro sente a perda dum elemento precioso.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

No mês de Nossa Senhora

Encontramo-nos em Maio, o mês de Nossa Senhora. É dela que eu vou falar. E vou começar com um pequeno poema do P.e António Martins de Faria, o tal que foi pároco de Balasar e depois de Beiriz, que foi arcipreste e publicou dois livros de poemas. Tem por título uma invocação da ladainha em latim, mas também em português: Mater Purissima, isto é, Mãe Puríssima. Diz assim nas suas quadras de sete sílabas:


Se à Virgem, Mãe da Pureza,
Querem dar provas de amor,
Dê-lhe o céu o seu fulgor
E a terra sua beleza.

Dê-lhe o sol seus arrebóis
E as suas per’las o mar;
Dê-lhe a lua o seu luar
E o seu canto os rouxinóis.

Dê-lhe a fonte os seus cristais
E as suas flor’s o vergel;
Dê-lhe a colmeia seu mel
E seu perfume os rosais.

Dê-lhe o poeta canções;
Dê-lhe quadros o pintor;
E vós, almas do Senhor,
Dai-lhe os vossos… Corações.


É um poema pequeno, muito elogioso, muito poético, com algumas palavras muito do gosto do tempo, como arrebóis e vergel, que significam, amanhecer e pomar, jardim.
No dia-a-dia, a gente fala de Nossa Senhora de Fátima, das Dores, da Assunção, da Conceição, de Lourdes, da Saúde, das Neves, da Guia, das Graças, da Boa Viagem, de Guadalupe, de la Salette… Qual será o título mais importante de Nossa Senhora? Um dia fizeram-me essa pergunta e eu respondi: “Santa Maria, Mãe de Deus”. Terei respondido bem? Creio que sim.
Entre os títulos com que se fala de Nossa Senhora, uns apontam para predicados seus, Imaculada Conceição, Assunção, Mãe de Deus, por exemplo; Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Ó ou da Expectação, que referem momentos da sua vida. Fátima, Sameiro, Lurdes, Aparecida, etc., são apenas locais onde Ela merece, por diversas razões históricas, uma devoção especial.
Mas tudo vem ter à sua maternidade divina. Ela é a Imaculada, porque ia ser a morada do Filho de Deus, é a Senhora da Assunção, porque foi a Imaculada, é a Senhora das Graças, porque é a Mãe de Deus… Porque era a Imaculada, o seu corpo não foi sujeito à corrupção.
Na Ladainha de Nossa Senhora, há uma série de invocações particularmente poéticas; vejam-se algumas: Espelho da justiça, Sede da sabedoria, Causa da nossa alegria, Vaso espiritual (…), Rosa mística, Torre de David, Torre de marfim, Casa de ouro, Arca da aliança, Porta do céu, Estrela da manhã, etc. De algumas destas invocações, que têm origem no Antigo Testamento, o católico comum nem alcança bem o sentido.
Paga a pena dar uma olhadela ao lugar da Mãe de Deus no Evangelho, em especial no de S. Lucas e de S. João.
Por altura de assumir a maternidade do Filho de Deus, Nossa Senhora teria cerca de 15 anos, o que era comum então para o casamento. Sendo assim, ao tempo da crucifixão do Seu Filho teria 48. Nesse momento, Jesus entrega-a aos cuidados de S. João.  A sua vida terrena pode ter-se prolongado ainda por uma ou duas dezenas de anos. Isto é, ao menos até aos 60 anos.
Como terá sido a sua vida após a Ressurreição de Jesus? Ela só é mencionada uma vez nos Actos dos Apóstolos. Depois sabe-se que esteve em Éfeso, no extremo ocidental da Turquia, certamente em razão de perseguições.
No Evangelho de S. João, Jesus valoriza a contemplação em relação à acção. A Nossa Senhora caberia um papel discreto – mas importante – de contemplativa. Vibraria com a vida das primeiras comunidades, com as suas dificuldades, com as perseguições, que Lhe lembrariam o sofrimento do seu Filho e o seu.
A gente nem imagina bem isso, mas Nossa Senhora sem dúvida também comungava como as outras pessoas. Então sentir-se-ia numa união inteiramente particular com o seu Deus, que era também seu Filho. Verdadeiramente, porque o acolheu no seu seio de jovem, Ela é que O dava e dá sempre a quem O comunga.
Eu tenho pena de não saber certos cantos litúrgicos actuais, muito bonitos, sobre Nossa Senhora; se os soubesse, leria um a terminar. Assim, deixo ao ouvinte o cuidado de os recordar.