terça-feira, 17 de março de 2009

Nun’Álvares Pereira

Nuno Álvares Pereira vai ser canonizado em 26 de Abril próximo – o dia a seguir ao do aniversário da beatificação da Beata Alexandrina – e eu hoje vou falar dele.
Antes de conhecer a data da canonização, eu já tinha pensado fazer-lhe aqui e nesta data uma referência. É que houve uma coincidência interessante: eu queria falar dum romance de Agustina Bessa-Luís. Ora ao menos um espaço desse romance está ligado a uma casa aqui das proximidades a que ela chamou Condestável, porque, escreve, se dizia que ali “acampavam os cavaleiros de D. Nuno Alvares Pereira em tempos de torneios e caçadas” (fim de citação).
Nuno A. Pereira, que nasceu em 1360 e morreu em 1431, é usualmente apresentado como o herói da Batalha de Aljubarrota. De facto, esse é um momento alto da sua vida. Tinha então 25 anos. A diferença numérica entre Castelhanos e Portugueses em campo era demasiado flagrante, talvez seis para um, e eles foram vencidos (diz-se castelhanos e não espanhóis porque na área da actual Espanha havia então vários reinos e a batalha foi contra o de Castela). No campo dos Castelhanos, onde se encontrava quase a totalidade da nobreza portuguesa, a vitória parecia absolutamente garantida e eles achavam uma loucura a resistência dos nossos.
Era muito difícil tomar a iniciativa de combater nessas condições. Houve até alguns fugitivos, que os Castelhanos mataram, o que nunca deviam ter feito, pois inibiram assim outros de tentar a mesma sorte.
Quem conta a batalha de Aljubarrota é Fernão Lopes. Este eminente historiador ignorava alguns pormenores importantes, o que é até de estranhar. Pelos vistos, entre as frentes dos dois exércitos, Nun’Álvares Pereira tinha disfarçado as chamadas covas de lobo – covas cobertas com ramagens – que desorientaram a cavalaria castelhana quando começou a avançar.
O combate ocorreu em 14 de Agosto, véspera da Assunção de Nossa Senhora, e decidiu-se em pouco tempo.
Curiosidade importante: na altura, os Castelhanos estavam do lado do Anti-Papa, pelo que era fácil incitar os combatentes a uma luta de contornos religiosos.
N’Os Lusíadas, Camões também conta a Batalha de Aljubarrota. Mas é uma batalha sonhada, sem grande correspondência com a realidade histórica. Há por lá anotações hilariantes, que o probo Fernão Lopes abertamente recusou.
O Mosteiro da Batalha, dedicado a Nossa Senhora da Vitória, foi construído em agradecimento ao êxito de Aljubarrota. Há poucos meses estive lá. Fiquei escandalizado com o aspecto degradante de algumas paredes e janelas. Quando se vai hoje a Mafra, o exterior do convento está uma maravilha: é um espectáculo grandioso e que a meu ver deita por terra o ridículo memorial de Saramago a propósito daquela magnífica construção. A Batalha não foi limpa. Há até uma parte, certamente menos monumental, sem telhado.
Em Santa Clara de Vila do Conde, encontra-se o túmulo de D. Beatriz, a filha de Nun’Álvares Pereira. Ela faleceu em Chaves e o cadáver foi trazido para aí pelo pai. A arca tumular é de boa qualidade. Recorde-se que esta mulher está na origem da Casa de Bragança, pelo que é uma figura muito importante da nossa história.
Há uma expressão portuguesa que diz: cai ou vai cair “o Carmo e a Trindade”. O Carmo, nesta frase, é o Convento do Carmo, em Lisboa por cima do Chiado e do Rossio, fundado por Nun’Álvares Pereira e onde ele professou, em 1423, depois de se ter desfeito da sua imensa fortuna. Como se sabe, a construção não resistiu ao terramoto de 1755: nessa altura abateram-se mesmo o Convento do Carmo e a Igreja da Trindade
Nun’Álvares Pereira foi sempre um homem de profunda vivência religiosa; enquanto militar, chegava a abandonar o campo da batalha para rezar, como se confiasse mais na Providência do que na força dos seus homens e das suas armas. Em 1415, com 55 anos, ainda esteve na tomada de Ceuta.
Por gratidão a este grande herói nacional e notável homem da Igreja, os portugueses que o puderem fazer não devem faltar à sua canonização. Os seus contemporâneos lisboetas já lhe chamavam em vida “Santo Condestável”.

Dois sonetos camonianos de amor de perdição

No seguimento da minha anterior conversa sobre o Amor de Perdição, vou hoje ler dois sonetos de Camões. Contam ambos breves histórias de amores de perdição. Aliás, em Camões o amor acaba quase sempre em fracasso.
O primeiro é um dos do ciclo da Dinamene, que foi uma chinesa por quem ele se apaixonou e que morreu na foz do Mecongue, na costa do actual Vietname, naquele naufrágio em que Camões sobreviveu, conseguindo ainda salvar o seu poema.
Neste soneto conta o poeta que, de noite, sonha com ela. Vê-a num descampado, à distância, e então corre para ela, mas sente que ela se afasta. Põe-se a gritar e então acorda. Conclui por isso que nem um breve e agradável engano pode ter.

Quando de minhas mágoas a comprida
imaginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
que para mim foi sonho nesta vida.

Lá numa soïdade, onde estendida
a vista pelo campo desfalece,
corro par'ela; e ela então parece
que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: Não me fujais, sombra benigna!
Ela (os olhos em mim cum brando pejo,
como quem diz que já não pode ser),

torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...
antes que diga mene, acordo e vejo
que nem um breve engano posso ter.

É um belíssimo poema.
O segundo soneto fala dum pescador chamado Aónio. Este estranho nome contém as letras com que então se escrevia João: é um anagrama. Também se passa de noite.
O pescador está só, na praia. É tudo comum em seu redor: o movimento das ondas, o silêncio da noite, o sossego da terra e do céu… mas Aónio está atormentado pelo desaparecimento da sua amada, que pode ser a mesma Dinamene do soneto anterior. Então grita às ondas que lha devolvam. Mas recebe como resposta só o silêncio e o alheamento de tudo.

O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas que se estendem pela areia...
Os peixes que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado,
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:

- Ondas – dizia – antes que Amor me mate,
tornai-me a minha Ninfa que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita!

Ninguém lhe fala, o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz que ao vento deita.

Este é o soneto da solidão e da incomunicabilidade das coisas.
O último verso é um achado: aqueles quatro vv parece que nos fazem ouvir o vento.
Eu chamei-lhes sonetos de perdição e parece-me que não me enganei.

Eu não tenho nenhuma anedota de Camões para contar. Mas vou leu este curto e célebre poema:
Esparsa.

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No mundo grandes tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só pera mim,
Anda o mundo concertado.

“Amor de Perdição”

Vou falar dum livro de Camilo que foi grande êxito de livraria: “um êxito extra-lusitano”, segundo o seu autor. Foi escrito na prisão em meados do séc. XIX e em breve período de tempo. Estou-me a referir ao Amor de Perdição, publicado em 1862.

É uma história à Romeu e Julieta: conta que houve dois adolescentes, que viviam um de cada lado da mesma rua, em Viseu, e cujos pais se odiavam. Mas entre os jovens nasceu uma paixão avassaladora, de tal força que eles vão arriscar tudo para enfrentar os entraves que a dificultam. E acabam mal, pois a paixão condu-los à morte, uma morte na flor da idade. É uma história romântica, muito ao gosto de Camilo.
Além de Viseu, também aparecem na história Gaia e o Porto. Espaços como Vila Real e outros são muito secundários.
Quando f oi escrita, já não era então uma história contemporânea, pois passava-se ainda sob o antigo regime, no começo do século, cerca de 60 anos antes. Quer o espaço quero o tempo evocados eram arcaizantes, pelo menos não urbanos em sentido moderno. E quando o livro foi publicado, o país estava a mudar muito.
Alguns aspectos justificam o seu êxito: a luta desenvolvida por aquele par ainda tão jovem contra a prepotência dos pais, cujos rancores velhos impedem a felicidade da nova geração; uma certa recuperação moral do protagonista por obra do amor; a determinação e a fidelidade da Teresa ao seu ideal; a nobreza de espírito de Mariana; a gratidão, a determinação e a clareza de ideias de João da Cruz…
Uma vez, há uns quinze anos, eu orientava a leitura deste livro junto dos meus alunos e pus-lhes a questão, como é que o Amor de Perdição se enquadra na situação real que o autor vivia, a de estar na prisão por fugir com a jovem Ana Plácido (que abandonara o marido e se juntara ao escritor)? Creio que a solução é bem fácil e justifica alguma reflexão.
Ao conceder, na sua história, à paixão o direito de se sobrepor a todas as outras regras de conduta, ao torná-la um absoluto, o autor está a legitimar os seus actos de apaixonado.
Entendamo-nos: Simão mata, arrisca-se à forca, parte depois para o degredo e morre; Teresa enfrenta o pai e morre também: mas tudo isso se apresenta legitimado pela paixão amorosa.
É claro que não se pode negar à juventude o direito, no caso inteiramente legítimo, de seguir o seu caminho, mas há regras para todas as situações. O matrimónio, ou simplesmente o casamento, como lugar onde, com as limitações conhecidas e inevitáveis, se realizam fundos anseios dum homem e duma mulher que se amam e complementam e onde se garante da estabilidade da família, tem de ser protegido. Por isso, a romântica proposta camiliana esconde um erro básico, nunca bem declarado, mas que lhe era favorável.
Isto não é moralismo fácil, mas uma exigência nascida do mais elementar bom senso.
Como quer que seja, as histórias de Camilo são, por regra, moralmente muito mais aceitáveis que as daquele que veio a ser seu rival, o poveiro Eça de Queirós.
Camilo foi um autor de sucesso cá no Norte, espaço a que está predominantemente ligada a geografia das suas histórias. O Amor de Perdição não terá sido inteira excepção, embora o seu êxito, comprovado por exemplo pelas versões cinematográficas que já proporcionou, se deva a razões muito próprias e que estão para lá de regionalismos.

Para terminar, vou contar uma anedota de Camilo. É uma anedota que lembra o jeito de resposta pronta e mordaz que se atribui a Bocage:
Um dia o escritor ia num caminho montado num burro. Passa então por ele um fulano abastado a cavalo e pergunta-lhe: “Então, Sr. Camilo, como vai o burro?” Responde-lhe o escritor: “A cavalo, a cavalo”.