segunda-feira, 23 de abril de 2012

A Viscondessa de Azevedo

A Viscondessa de Azevedo era, naturalmente, a esposa do Visconde de Azevedo. E diz-se visconde e viscondessa, mas podia-se dizer conde e condessa, pois acabaram por ser elevados ao condado alguns meses antes de ele morrer.
Esta senhora nasceu a 6 de Agosto de 1804, aqui na Póvoa de Varzim. Era filha de José Carneiro da Grã-Magriço e de D. Francisca Henriqueta Coelho Fiúza Ferreira Marinho Falcão Sottomayor. Os pais eram gente com posses: fora o avô que reconstruíra a sua casa – aquela em que está o Museu – para o edifício que todos conhecemos.
A viscondessa porém ficou órfã de pai com ano e meio. Ele faleceu em Balasar, em 1806, certamente muito jovem. O assento de óbito tem algumas observações que merecem leitura. “Faleceu só com o sacramento da Penitência, administrado sub conditione, e Extrema-Unção, porque os cirurgiões lhe afirmaram a saúde, e a morte veio rápida, sem se esperar”. Pouco antes, o pároco convidara-o para os sacramentos, mas ele repondera “que ainda não estava nesses termos”.
“Foi sepultado dentro da Igreja, na sepultura imediata ao altar da Senhora das Dores”, acrescentou o pároco.
Deveria andar ainda nos vinte anos: não esperava acabar tão rápido!
Desconheço a data do falecimento de D. Francisca, a mãe da Viscondessa, que também foi sepultada em Balasar. De facto, há uma falha nos livros dos assentos de óbito desta freguesia e por isso não possuímos essa informação sobre muitas pessoas de lá. Mas era ainda viva em 1845, por exemplo.
É de crer que a viscondessa tivesse sido uma jovem muito atraente. De facto, entre os bens da sua fortuna e os do marido havia uma grande diferença, favorável a ele; os pergaminhos de nobreza do marido eram muito, muito mais impressionantes que os dela; e ele até era um pouco mais novo.
Casaram numa daquelas décadas terríveis da primeira metade do século XIX, em 1827. Quando ainda contaria por meses o tempo do seu casamento, foi servir nas fileiras de D. Miguel, o que há-de ter causado as maiores apreensões à sua jovem esposa.
Se a informação biográfica sobre o visconde não é muito abundante, a informação sobre a viscondessa ainda o é menos.
Há um documento de 21 de Agosto de 1830 assinado pelo casal que começa assim:
Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca de Barbosa Pinheiro Pereira de Sousa, Moço Fidalgo da Casa Real, Senhor de Azevedo e dos coutos de Mazarefes e Paradela, com minha mulher, D. Maria José Carneiro da Grã-Magriço, Senhora da Quinta e Prazo de Balasar, actualmente assistentes na nossa casa solar de Azevedo, etc.
Este importante solar de Azevedo fica na freguesia barcelense de Lama.
A Viscondessa faleceu com 81 anos, em 3 de Janeiro de 1886, no Porto, de uma “apoplexia fulminante”. Escreveu-se na altura que ela tinha um porte aprumado e vigoroso e que era senhora duma organização física “forte e enérgica, que parecia zombar dos anos”.
No testamento dispôs que o seu corpo fosse “envolvido em hábito de Santa Teresa (de Ávila), encerrado em caixão de chumbo e sepultado no jazigo da família que tem na freguesia de Balasar, deste concelho, onde repousam os restos mortais de sua mãe”.
Contrariamente ao seu desejo, D. Maria José Carneiro da Grã-Magriço não foi sepultada em Balasar, antes em Barcelos, “por a autoridade administrativa do Porto se opor a que fosse para Balasar, conforme era vontade da testadora”.
Entre as numerosas disposições do seu testamento, salientamos algumas: quis que o seu corpo fosse conduzido da sua residência para a igreja por quatro pobres, a cada um dos quais se daria significativa esmola. Não quis pompa nem música (certamente marcha fúnebre); e acrescentou: “igual ao do meu marido”. À Santa Casa da Misericórdia do Porto deixou um legado enorme, de 17 contos; à de Vila Nova de Famalicão, um mais modesto de 2 contos e meio. Mas beneficiou muitas outras instituições e pessoas singulares, várias da Póvoa e até os pobres de Balasar.
Esta freguesia, a quem ela, nas visitas à sua casa, ao túmulo dos pais, muitas vezes há-de ter espantado com as suas carruagens, criadagem e diversos equipamentos citadinos, tem para com ela uma dívida que a toponímia deveria saldar.

Evangelho de S. João

Nesta proximidade da Páscoa, vou dizer algumas palavras sobre o Evangelho de S. João.
Os Evangelhos não são todos iguais, não dizem todos o mesmo nem do mesmo modo. Entre o de S. Marcos e o de S. João, com os de S. Mateus e de S. Lucas pelo meio, há grandes diferenças.
Uma característica que marca o de S. João é o relevo dado a Jerusalém. Isto é, Jesus, segundo os outros evangelistas, ensina principalmente no norte, na Galileia. Era aí que ficava Nazaré, sua terra, era aí que ficava Cafarnaum, a cidade onde se instalou durante o seu ensino público, era aí que ficava o lago de Tiberíades ou Mar da Galileia, o Monte Tabor (da Transfiguração), eram galileus os apóstolos, foi aí que proclamou as Bem-Aventuranças, o Sermão da Montanha…
Por quaisquer razões, S. João teria uma relação especial com Jerusalém e isso reflecte-se no seu evangelho. E que importância tem?
Quando nós dizemos que o vida público de Jesus (o seu ensino) durou três anos, fazemo-lo a partir do Evangelho de S. João. Realmente, é este evangelista que narra três idas a Jerusalém pela Páscoa; os outros narram apenas uma. Teologicamente ele mais compacto, o que se coaduna com o ambiente judaico, mais apto a receber as verdades do Mestre. Os debates em Jerusalém são acalorados e com alto conteúdo teológico.
Há episódios célebres que decorrem em Jerusalém ou nas proximidades.
O da expulsão dos vendilhões do Templo é um deles. O Templo de Jerusalém, como tal, era um edifício de reduzida dimensão. Grande era uma área, podemos dizer que muralhada por fora e cercada de pórticos colunados por dentro, o chamado Átrio dos Gentios. A esse espaçoso átrio qualquer não judeu tinha acesso. E isto é importante pois marca a dimensão universal da adoração no templo: Deus é só um. Nas grandes festas anuais, esse átrio deveria tornar-se pequeno para acolher tanta gente. Segundo o episódio narrado por S. João, vendedores de animais para serem sacrificados e cambistas, que trocavam o dinheiro trazido pelos judeus da diáspora em moeda aceite pelas autoridades religiosas, tinham-se instalado lá. Jesus, num gesto que facilmente se adivinhava como profético, expulsou-os: o comércio era inteiramente inaceitável num espaço destinado à adoração.
A ressurreição de Lázaro não ocorreu em Jerusalém, mas nas proximidades. Foi um episódio que alarmou as autoridades do Templo, dominadas pelos conservadores saduceus.
Há um pormenor desse episódio para que quero chamar a atenção. Tem a ver com as irmãs Maria e Marta. Os leitores ou ouvintes da narrativa têm tendência a pôr-se do lado da activa Marta, mas Jesus elogia a menos activa, Maria, a contemplativa. Dentro do cristianismo, a acção não faz sentido sem a contemplação, sem antes escutar o que Deus quer que se faça e sem confiar que é sobretudo Ele que torna a acção produtiva. O que não for isso aproxima-se duma perspectiva pagã.
Claro que todos os evangelistas situam em Jerusalém a Paixão e Morte de Jesus e S. João também o fez, embora haja no seu evangelho ocorram pormenores muito originais.
Este evangelista não tem a narrativa da instituição da Eucaristia, embora tenha um texto importante eucarístico, que situa no norte, na Galileia e na proximidade da festa da Páscoa. No momento em que se esperaria a instituição da Eucaristia, coloca o evangelista o lava-pés e o discurso de despedida, que são duas das maravilhas do seu evangelho.
Tem o seu quê de surpreendente que a Última Ceia de Leonardo da Vinci retrate um momento desta despedida, onde, repito, não há a instituição da Eucaristia.
Já há muito tempo, chamei aqui a atenção para uma frase proferida por um guarda do Templo a quem tinha sido dada ordem para prender Jesus. A frase diz: “Jamais um homem falou assim”. Não foi frase proferida por um doutor da Lei ou por um alto membro da hierarquia sacerdotal, mas S. João achou que deveria guardar dela memória. Há hoje muitos homens sábios, não raro enfatuados, que pretendem negar a divindade de Jesus, reduzindo-o não só a um homem comum, mas até reinventando a narrativa evangélica. Não entenderam nada.
Não quero terminar sem dizer alguma palavra sobre o célebre prólogo do Evangelho de S. João, que noutros tempos era lido no final de todas as missas. Fazem-se lá afirmações do mais vasto alcance: “No princípio já existia a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus”. “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós”. A Palavra é o Filho de Deus, que tudo diz sobre Deus Pai, que O revela. Que O revelou aos homens como amor.

Paulo de Cantos

Eu tenho vindo a abordar temas balasarenses, mas hoje vou tratar um que não tem a ver com Balasar. Vou falar dum professor que ensinou no Liceu poveiro há muitos anos e que se chamava Paulo de Cantos.
Um dia ouvi falar dele e até me mostraram vários livros que escreveu. Isso provocou-me alguma curiosidade uma vez que me vinha a interessar por professores do Liceu que tivessem deixado obra publicada. Então fui ler um artigo que o estudava no Boletim Cultural e dois que o Dr. Jorge Barbosa escrevera n’A Voz da Póvoa. Mais adiante, publiquei um pequeno artigo sobre Paulo de Cantos no jornal da ESEQ, a sucessora do Liceu, e muito recentemente abri um blogue onde coloquei informação sobre cerca duma dezena de professores da minha escola, entre eles o Prof. Paulo de Cantos.
Recentemente, uma associação de Lisboa, com patrocínio do Governo, da Secretaria de Estado da Cultura e da Direcção-Geral das Artes, promoveu umas Jornadas Cantianas. Cantianas, isto é, sobre Paulo de Cantos. Isto é surpreendente. Quem diria que um professor que ensinou na Fábrica do Gás ia merecer tal consagração? Mas não é tudo, na Capital Europeia da Cultura ele terá merecido uma exposição. Quer isto dizer que Paulo de Cantos está a ser redescoberto e muito valorizado.
O Prof. Paulo de Cantos nasceu em Lisboa (Ajuda) em 13 de Março de 1893 e aí faleceu em 9 de Abril de 1979. Segundo o Dr. Jorge Barbosa este professor, que era muito rico, frequentou as Universidades de Lisboa, Porto e Coimbra. “Dotado de grande inteligência, curiosidade e ânsia de saber e possuidor duma prodigiosa memória, fez vários cursos, concluindo licenciaturas em Matemáticas, Desenho, Físico-Químicas, Ciências Naturais e Biológicas, Línguas Românicas (Filologia Românica), segundo julgo, e ainda Cursos de Belas-Artes e até tirou, entre outros, um diploma em Vitivinicultura”.
Foi depois professor do ensino liceal, começando pelo Pedro Nunes (Lisboa) e posteriormente leccionou no Liceu Eça de Queirós, no qual passou a maior parte da sua vida professoral, chegando a ser reitor cerca de 10 anos.
Sobre a bibliografia do Prof. Paulo dos Cantos escreveu ainda o mesmo articulista:
É muito grande, complexa, original, singular e, porque não dizer, extravagante a bibliografia deixada pelo Dr. Paulo de Cantos.
Além do Dr. Jorge Barbosa, que publicou os seus dois extensos artigos n’A Voz da Póvoa em 16/9/93 e 14/10/93, também sobre este antigo reitor da nossa Escola escreveu Ney da Gama Simões Dias, no vol. XXXIII, de 1996/1997 do Boletim Cultural Póvoa de Varzim. Aí aproxima a produção artística do Prof. Paulo de Cantos do movimento alemão da Bauhaus.
As Jornadas Cantianas propunham-se apresentar, pela primeira vez, a obra (possível) do autor (livros, maquetas e objectos) ao público, convocando igualmente autores do design, tipografia e crítica cultural para um ciclo de conferências em torno de temáticas tangenciais à obra do autor.
A Paulo José de Cantos descrevem-no como “um ilustre desconhecido dos meandros bibliófilos, um prolífico pedagogo Povoense impelido pela publicação, banzado por tipografia, por acrósticos destravados e pelo universalismo da língua e da lusofonia. Paulo de Cantos foi um auto-editor de invulgares, idiossincráticos, inclassificáveis e imprudentes livros que povoam (cada vez menos) as prateleiras de várias lojas de alfarrabistas”.
Chama-lhe o primeiro surrealista português em grafismo, isto é, reconhecem-lhe a originalidade extravagante que já lhe notara o Dr. Jorge Barbosa.
A Escola Secundária de Eça de Queirós possui alguns livros da autoria do Prof. Paulo de Cantos provenientes da biblioteca do Mons. Manuel Amorim.
Eu vou terminar lendo uma anedota que o Prof. Paulo de Cantos contou, em 1934, na abertura do ano lectivo do Liceu ou a “ singular historieta de certo aldeão que tinha um bom pedaço de terra crua na sua freguesia”.
Um dia passou por lá um caçador da cidade, parou, observou-o e disse-lhe:
- Mas que rica terrinha você aqui tem! Isto naturalmente dá trigo!?
- Não senhor - responde o homem - não dá.
- Admira. Então milho dá, com certeza!
- Engana-se Bossa Senhoria, também não dá.
- Essa agora tem graça! Mas olhe lá, ó santinho, você já experimentou aqui alguma vez semear?
- Ora, ora, adeus! - retorquiu o patego - Pois semeando é claro que dá…
Os alunos naturalmente dão pouco ou nada, mas se trabalharem produzem.

As Fontainhas em Balasar

As Fontainhas são um lugar de Balasar que se destaca pelo aspecto urbano e moderno dos seus edifícios e pela expressiva presença de serviços: agências bancárias, postos de abastecimento de combustível, farmácia, cafés, etc. Mas não foi sempre assim. De facto as Fontainhas são um lugar recente. Foi a estação do caminho-de-ferro, criada em 1877, que deu o empurrão para que aquele ignorado lugar chegasse ao que chegou.
Que eram as Fontainhas até então?
Cruzavam-se ali duas estradas, ou antes, dois caminhos, um que ia dos lados de Barcelos para os do Porto, e vice-versa, outro que vinha dos lados de Famalicão para Rates e Vila do Conde. Coisa não muito significativa.
Tratava-se de um espaço não habitado. De facto, os assentos paroquiais não dão conta de que houvesse aí moradores, o que é confirmado pelos dois tombos da Comenda de Balasar. Estes documentos falam de uma venda, a venda do Torrão em 1608 e a venda do Feiticeiro em 1830. Mas a venda poderia ficar em terreno de Macieira de Rates, onde há o campo do Feiticeiro.
Se recuarmos, encontramos menção do lugar em documentos medievais, mas como realidade bastante vaga. Curiosamente, chamam-lhe Fontainha. A forma do plural será talvez devida a um erro da companhia do caminho-de-ferro, pois nunca tinha aparecido antes. Antes só ocorria a forma do singular.
Como já disse, a estação do caminho-de-ferro é que relançou o lugar. Mas uns dez ou vinte anos atrás, tinha sido aberta a estrada de Portas Fronhas para Guimarães, a Estrada Real n.º 31, como se lhe chamava. Sem ela, a estação do caminho-de-ferro não levaria o lugar aonde levou.
No final do caderno que em 1886 regista os eleitores de Balasar, documenta-se um gesto que se pode considerar simbólico: Manuel de Antas, chefe da estação das Fontainhas, reclama a inclusão do seu nome na lista. Era um lugar novo a exigir ser visto e ouvido, a mostrar que existia.
Nos cadernos seguintes, assinalam-se lá um vendeiro e um ferreiro. Mas a venda não era a do Torrão nem a do Feiticeiro, pois não ficava no limite da freguesia.
Em 1904, vem para chefe da estação das Fontainhas um homem muito culto e criativo, o Chefe Sá. Fundou um grupo cénico, uma tuna, um clube de tiro, promoveu a criação duma feira, etc. Elevou alto o nome do lugar, atraiu para ele as atenções. A tuna chegou a actuar em Famalicão, Guimarães, Amarante, etc., a feira chegou a chamar ali milhares de pessoas nos dias de feira grande.
Um genro do Chefe Sá deu também valioso contributo para engrandecer as Fontainhas; foi o Sr. José António de Sousa Ferreira. Iniciou aí a indústria e chegou a ser vereador. Se o sogro tinha sido mais artista, ele foi mais prático.
Das pequenas indústrias das Fontainhas ficaram célebres a Fábrica da Cal e uma Serração e Moagem. Para terminar por hoje, vou ler uns versos da “Descrição do Passeio Anual dos Empregados da Fábrica de Serração e Moagem de Fontainhas”, texto impresso. Devia-se estar nos anos quarenta. O passeio foi por Espinho, Aveiro, Batalha e Lisboa; no regresso veio-se por Leiria e Fátima. O versificador, a quem chamavam Celestino Miúdo, sabia pouco da sua arte, pois bastantes versos são mancos, pois não têm o número completo das sílabas; mas veja-se a chegada à capital:
Tudo ia satisfeito,
A viagem muito boa;
Às dez horas da noite,
Demos entrada em Lisboa.

Foi uma alegria
P’ra quem nunca tinha visto.
Só se ouvia perguntar:
“Ó paz, o que é isto?"
No regresso a Balasar, o autor faz esta divertida avaliação da viagem:
Todos vinham satisfeitos,
Na melhor harmonia;
Cantavam e dançavam
Com a maior alegria.

Mil e tal quilómetros
Andou a caravana.
O que mais me admira,
Ninguém tomar a carraspana.
Ninguém tomou a carraspana, todos vinham satisfeitos, acabou bem, foi bom. E eu termino aqui.

A propósito duma nota de Santos Graça

No livro O Poveiro, Santos Graça deixou esta nota sobre a Santa Cruz de Balasar e as siglas que existiam na porta da respectiva capela:
Estiveram em risco de se perderem as marcas existentes na Capela da Santa Cruz de Balasar, deste concelho. Aproximava-se o centenário do dia em que, segundo a lenda, apareceram gravadas no chão e no local onde se construiu a capela as três cruzes do Calvário.
A confraria do Senhor da Cruz resolveu caiar as paredes e pintar a porta do templo para que a Capela se apresentasse asseada em dia tão festivo e memorável.
Aqueles riscos e sarrabiscas feitos à faca ou a canivete davam, para os mesários, um mau aspecto à porta. E deliberaram emassá-la para que a pintura tivesse mais realce! Felizmente, o acaso levou-me àquela freguesia naquela época e a tempo de saber o que se projectava. Abeirei-me dos mesários e fiz-lhe a proposta, que foi aceite, de lhes dar uma porta de boa madeira por aquela, ao mesmo tempo que os esclarecia do merecimento daqueles riscos. Dias depois apareceram-me para me dizer que ficava sem efeito o contrato.
A porta ficaria na capela, tal qual estava com as marcas, apenas coberta  com uma camada de verniz para a sua conservação. Achei óptimo. A porta lá está, magnificamente conservada.
Foi louvável esta diligência, mas ele não andava muito bem informado: fala na lenda, ora o caso não era de lenda, mas de história; fala nas três cruzes, mas foi apenas uma.
Santos Graça fez ou mandou fazer um desenho das siglas que se viam na porta e foi bom porque a porta… Eu creio que ela existe, mas as gravuras estão quase apagadas, o que é manifestamente pena.
Está-se a preparar a comemoração dos 130 anos do nascimento deste poveiro. Seria bom que a comemoração fosse justa, isto é, que não fosse como a de quem faz um elogio, exaltando as qualidades e ignorando conscientemente os defeitos do elogiado.
Balasar, a Póvoa e o seu concelho têm todos graves razões de queixa contra o homem. No tempo em que era lugar-comum achincalhá-lo, as pessoas não eram desprovidas de senso. Chamavam-lhe o Amarelo e então gracejavam: Na loja do Amarelo, ao que se chama farinha deve-se chamar farelo. Ele esteve muitas vezes do lado errado.
Já aqui falei do caso do jornal Poveiro, que Santos Graças, há cem anos, levou a tribunal várias vezes, que censurou e que por fim fez encerrar; já falei dos arrolamentos – a nacionalização dos bens paroquiais – que ele dirigiu na qualidade de administrador; já falei do exílio do pároco poveiro que Santos Graça provocou… E, ao menos que eu saiba, pois nisso não me considero informado, nem a Ditadura Nacional nem o Estado Novo o beliscaram… Seria melhor que se homenageassem as vítimas de Santos Graça.
Ouçam-se estes versos, intitulados Não sai!... e publicados em 15 de Fevereiro de 1914, sem assinatura, n’ O Intransigente:
Sai do monte de Laundos
A água férrea e metais,
Sai o Afonso de ministro,
Só tu, Graça, não sais!

Saem mantas de Terroso
E d’Abremar batatais,
Os esterqueiros de Rates,
Só tu, Graça, não sais!

Da Estela saem pinhas,
Hortaliça de Navais,
Ezequiel de Beiriz,
Só tu, Graça, não sais!

Sai Malagueno da Câmara,
E da Junta o Magalhães,
Sai o Relvas de Madrid,
Só tu, Graça, não sais!

Sai do Governo “o das Ratas”,
Biológico, outros mais,
Só tu, caro Amarelo…
Não chores, que também vais!
No mesmo jornal, na semana seguinte, saiu um outro, que abria muito bem, mas que depois descaía em brejeirices. Tinha por título O Amarelo (Monólogo Carnavalesco) e começava assim:
O branco é cor da pureza,
O verde é cor da esperança:
Quem espera sempre alcança
O seu bem que anseia, belo.
Azul é a cor do céu,
Vermelho é a cor do sol,
Do formoso arrebol,
- Desespero… o Amarelo!

Os assentos paroquiais de Balasar no séc. XVIII

Afora a importante informação que se pode colher nos assentos paroquiais do século XVIII sobre os Grã-Magriços, o que mais impressiona neles é a morte de tantos balasarenses fora da sua terra, os baptismos de filhos de muitas mães solteiras, de enjeitados e as referências aos escravos.
Começo pelos escravos: teve-os Manuel Nunes Rodrigues, vários, e houve ainda a escrava Luzia, do Sargento-Maior, que residia no Porto e que certamente era do lugar do Casal.
Em 1753, uma escrava solteira de Manuel Nunes Rodrigues, chamada Natália, teve um filho. Com alguma ironia, chamaram-lhe Boaventura, que é o mesmo que boa sorte. Mas não se registou o nome do pai, o que não era de bom augúrio.
Da escrava Luzia, só se conhece o assento de óbito, que começa assim: Aos 9 dias de Novembro de 1763, faleceu da vida presente Luzia, escrava do Sargento Maior, morador na cidade do Porto, com todos os sacramentos. Uma nota lateral informa que se tratava duma escrava preta.
Os registos de baptismo de Balasar, ao longo do século XVIII, dão notícia de vários enjeitados. Oiça-se o começo de um: Aos doze dias do mês de Setembro de mil setecentos e dois, fiz os exorcismos a Maria, que enjeitaram na aldeia de Gestrim (sic), e trazia um escrito que dizia vinha baptizada.
Demo-nos ao cuidado de verificar nos assentos de baptismo de entre 1700 e 1710 os filhos de mães solteiras: em 192 baptismos, 16 eram de crianças de mães solteiras, o que corresponde aproximadamente a uma em cada dez, sobretudo se se acrescentar que houve dois baptismos de enjeitados. São muitas crianças sem pai identificado para uma freguesia que teria uns 500 habitantes. Assinalam-se casos de mães solteiras nos registos de baptismo, mas também nos de casamento e óbito.
Além da cobardia masculina de quem não assume a paternidade, esta chaga social que descarregava sobre a mãe, além da vergonha da situação criada e que lhe marcava o futuro, todas as canseiras e custos da criação dos filhos, alguma coisa há-de ter a ver com a emigração: devia ser desesperante para as jovens ver os rapazes da sua idade a desertar continuamente para outras paragens.
A situação manteve-se por muito tempo. Entre 1811 e 1821, em 153 baptismos, contam-se quatro filhos “naturais”, correspondentes a filhos de mães solteiras, e um exposto, correspondente a enjeitado.
O eldorado brasileiro que produziu um Manuel Nunes Rodrigues, que havia de dar Custódio José da Costa e mas tarde o comendador José Pedro dos Santos levou muitos balasareneses a tentarem a sua sorte do outro lado do Atlântico. Mas não só aí. Os registos guardam memória de homens que morreram nas “partes do Brasil”, no mar, em Lisboa e, em tempo de guerra, noutras paragens.
Havia um tipo de assentos que começava por estas palavras: “veio notícia certa”. Era o anúncio de que mais um balasarense enfrentara a morte longe da terra natal.
Certo Custódio, do Telo, faleceu nas partes da América no ano em que os EUA obtiveram a independência:
Veio notícia certa que Custódio, solteiro, filho que ficou de Domingos Ferreira, da aldeia do Telo desta freguesia de Santa Eulália de Balasar, faleceu nas partes da América, andando embarcadiço sobre as águas do mar, […]
Este Manuel também se finou muito longe: Veio notícia certa que Manuel, solteiro, filho que ficou de Domingos Manuel, da aldeia do Casal desta freguesia de Santa Eulália de Balasar, faleceu sobre as águas do mar, indo numa embarcação para as partes de Inglaterra, abintestado (sem testamento).
Noutros casos, a família mandava começar os sufrágios pelo familiar de quem desde há muito não havia notícia nem certa nem duvidosa: Aos sete dias do mês de Maio do ano de mil setecentos e cinquenta e oito, se principiaram a fazer aos bens de alma de Manuel, solteiro, filho que ficou de Miguel Domingues, da aldeia de Guardes desta minha freguesia de Santa Eulália de Balsar, por não haver notícia há mais de dez anos.
Se consideramos que estes assentos só mencionam os casos de emigrados com final trágico, para obter um número aproximado dos que partiam, devemos poder multiplicar o total por cinco ou até dez. E isto leva-nos a concluir que durante largo período emigraram muitos homens de Balasar. Mesmo muitos. Era uma verdadeira sangria.
Também se morria por afogamento no rio Este: Aos três dias do mês de Abril de mil setecentos e oito anos, faleceu António Álvares, de Gresufes, sem sacramentos, caiu ao rio: morreu afogado.
E desta vez termino aqui.

Ano de Balasar

Em 2012 completam-se 180 anos sobre a aparição da Santa Cruz de Balasar e 70 sobre a Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, que foi pedida à Beata Alexandrina. Por esta razão, eu queria fazer deste ano no Venha daí! um ano principalmente de Balasar. Isto é, eu falarei repetidamente da história desta freguesia, sem esquecer a recordação daqueles dois grandes eventos.
Uma vez, uma conceituada professora de História do ensino secundário perguntou-me como é que se estudava a história duma freguesia. Curiosa a pergunta vinda de quem veio. Eu vou hoje falar dos caminhos que segui para estudar a história de Balasar, dos passos precisei de dar para esse efeito.
Antes de mais, é preciso conhecer Balasar, a sua geografia, digamos assim. É preciso conhecer os seus lugares, as suas casas principais, os seus caminhos, em especial os mais antigos, as suas estradas, o traçado da linha férrea, o relevo da freguesia, os hábitos do rio Este, etc. Isto ainda não é história, mas é condição prévia e imprescindível. O seu conhecimento vai-se naturalmente alargando à medida que se contacta com a realidade local.
Que fontes é que há disponíveis? Esta é que parece ter sido a questão da tal professora.
Há fontes mais gerais e outras mais particulares.
Nas primeiras, incluem-se documentos como o Censual do Bispo D. Pedro, do século XI, que dá algumas informações muito antigas sobre as freguesias; as Inquirições dos reis Afonso II, III e IV, respectivamente de 1220, 1258 e 1343. A partir de 1623, para Balasar, há os assentos ou registos paroquiais, disponíveis na Internet até cerca de 1900, que são uma fonte de informação abundante; depois temos as Memórias Paroquiais de 1736 e 1758 e a informação da Corografia Portuguesa, dos primeiros anos de 1700. De 1845, há os Inquéritos Paroquiais. Estas as fontes mais gerais.
Em termos de fontes mais particulares para Balasar, há na Internet o Tombo da Comenda, de 1831 (quase duas centenas de páginas), há os estudos publicados no Boletim Cultural sobre temas como a anexação de Gresufes, o Roteiro dos Culpados, os Grã-Magriços, aspectos etnográficos da freguesia e os estudos pioneiros do P.e Leopoldino e os seus noticiários; e há os livros paroquiais. Para tempos recentes, existe ainda a informação do Arquivo Municipal, a da imprensa poveira, etc.
Há também os livros sobre a Beata Alexandrina, os livros de poesia do pároco P.e António Martins de Faria, um livro dum poeta balasarense, um livro sobre marcos do concelho que naturalmente interessa a Balasar, um outro sobre património construído em Laundos, Rates e Balasar, etc. E devem-se explorar as fontes orais e a toponímia, as datas dos lintéis e cartelas das frentes das casas, as das ferragens das portas, sem esquecer de estar atento à dezena e meia de nichos de Alminhas ou outros, distribuídos por vários lugares, e às pontes (tão importantes para as populações).
Estudar a história de Balasar é então conhecer a freguesia tão bem quanto possível, explorar e ordenar tudo o que estas fontes podem oferecer, tendo sempre em conta os lugares, as casas e as pessoas que os habitaram, verificar as transformações operadas ao longo do tempo…
Quanto mais culta for a pessoa que se abalança a um estudo destes, mais sugestões descobre na documentação que lhe chega às mãos, porque a relaciona com os mais diversos acontecimentos.
É possível fazer apaixonantes descobertas neste campo de investigação ainda pouco explorado.
A professora que fez a pergunta sabia muitas coisas do país, da Europa, da Ásia, da África, das Américas, o que parece é que sabia pouco do que lhe era mais vizinho. E a verdade é que a escola não presta atenção a isto, com grave prejuízo para a cultura dos seus alunos, que se convencem que as suas terras não têm qualquer valor para a cultura. Se o tivessem, a escola falava-lhes disso, supõem eles.