Nesta proximidade da Páscoa, vou dizer algumas palavras sobre o Evangelho de S. João.
Os Evangelhos não são todos iguais, não dizem todos o mesmo nem do mesmo modo. Entre o de S. Marcos e o de S. João, com os de S. Mateus e de S. Lucas pelo meio, há grandes diferenças.
Uma característica que marca o de S. João é o relevo dado a Jerusalém. Isto é, Jesus, segundo os outros evangelistas, ensina principalmente no norte, na Galileia. Era aí que ficava Nazaré, sua terra, era aí que ficava Cafarnaum, a cidade onde se instalou durante o seu ensino público, era aí que ficava o lago de Tiberíades ou Mar da Galileia, o Monte Tabor (da Transfiguração), eram galileus os apóstolos, foi aí que proclamou as Bem-Aventuranças, o Sermão da Montanha…
Por quaisquer razões, S. João teria uma relação especial com Jerusalém e isso reflecte-se no seu evangelho. E que importância tem?
Quando nós dizemos que o vida público de Jesus (o seu ensino) durou três anos, fazemo-lo a partir do Evangelho de S. João. Realmente, é este evangelista que narra três idas a Jerusalém pela Páscoa; os outros narram apenas uma. Teologicamente ele mais compacto, o que se coaduna com o ambiente judaico, mais apto a receber as verdades do Mestre. Os debates em Jerusalém são acalorados e com alto conteúdo teológico.
Há episódios célebres que decorrem em Jerusalém ou nas proximidades.
O da expulsão dos vendilhões do Templo é um deles. O Templo de Jerusalém, como tal, era um edifício de reduzida dimensão. Grande era uma área, podemos dizer que muralhada por fora e cercada de pórticos colunados por dentro, o chamado Átrio dos Gentios. A esse espaçoso átrio qualquer não judeu tinha acesso. E isto é importante pois marca a dimensão universal da adoração no templo: Deus é só um. Nas grandes festas anuais, esse átrio deveria tornar-se pequeno para acolher tanta gente. Segundo o episódio narrado por S. João, vendedores de animais para serem sacrificados e cambistas, que trocavam o dinheiro trazido pelos judeus da diáspora em moeda aceite pelas autoridades religiosas, tinham-se instalado lá. Jesus, num gesto que facilmente se adivinhava como profético, expulsou-os: o comércio era inteiramente inaceitável num espaço destinado à adoração.
A ressurreição de Lázaro não ocorreu em Jerusalém, mas nas proximidades. Foi um episódio que alarmou as autoridades do Templo, dominadas pelos conservadores saduceus.
Há um pormenor desse episódio para que quero chamar a atenção. Tem a ver com as irmãs Maria e Marta. Os leitores ou ouvintes da narrativa têm tendência a pôr-se do lado da activa Marta, mas Jesus elogia a menos activa, Maria, a contemplativa. Dentro do cristianismo, a acção não faz sentido sem a contemplação, sem antes escutar o que Deus quer que se faça e sem confiar que é sobretudo Ele que torna a acção produtiva. O que não for isso aproxima-se duma perspectiva pagã.
Claro que todos os evangelistas situam em Jerusalém a Paixão e Morte de Jesus e S. João também o fez, embora haja no seu evangelho ocorram pormenores muito originais.
Este evangelista não tem a narrativa da instituição da Eucaristia, embora tenha um texto importante eucarístico, que situa no norte, na Galileia e na proximidade da festa da Páscoa. No momento em que se esperaria a instituição da Eucaristia, coloca o evangelista o lava-pés e o discurso de despedida, que são duas das maravilhas do seu evangelho.
Tem o seu quê de surpreendente que a Última Ceia de Leonardo da Vinci retrate um momento desta despedida, onde, repito, não há a instituição da Eucaristia.
Já há muito tempo, chamei aqui a atenção para uma frase proferida por um guarda do Templo a quem tinha sido dada ordem para prender Jesus. A frase diz: “Jamais um homem falou assim”. Não foi frase proferida por um doutor da Lei ou por um alto membro da hierarquia sacerdotal, mas S. João achou que deveria guardar dela memória. Há hoje muitos homens sábios, não raro enfatuados, que pretendem negar a divindade de Jesus, reduzindo-o não só a um homem comum, mas até reinventando a narrativa evangélica. Não entenderam nada.
Não quero terminar sem dizer alguma palavra sobre o célebre prólogo do Evangelho de S. João, que noutros tempos era lido no final de todas as missas. Fazem-se lá afirmações do mais vasto alcance: “No princípio já existia a Palavra e a Palavra estava junto de Deus e a Palavra era Deus”. “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós”. A Palavra é o Filho de Deus, que tudo diz sobre Deus Pai, que O revela. Que O revelou aos homens como amor.
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