domingo, 21 de junho de 2009

A propósito do conto "O Tesouro" de Eça de Queirós

Vou começar por contar uma história antiga, quase tão antiga como o nosso país. Ela lembra uma outra – e é isso que o pretendo. 
  Conta-se que em Roma havia qua­tro ladrões. E andando um noite a furtar, sentiram a justiça e fugiram e esconderam-se numa cova. E quando a luz veio, acharam-se numa casa de abóbada muito formosa. E acharam nela um túmulo de mármore muito formoso. E disseram entre si: 
— Este túmulo foi dalgum homem nobre e rico. Abramo-lo e vejamos se achamos nele algum bem; porque noutros tempos costumavam enterrar os grandes homens com presentes e coisas de grande preço. 
Então abriram o túmulo e acharam-no cheio de ouro e de prata e de pedras preciosas e de vasos e de taças de ouro muito formosas. E entre elas estava uma taça muito formosa e maior que todas outras. Quando isto acharam, disseram entre si: 
— Agora estamos ricos e com sorte e seremos ricos para sempre, nós e nossos filhos; mas será bem que algum de nós vá à vila buscar comer. 
E cada um se escusava, dizendo que era conhecido na cidade e temia que o enforcassem. Por fim disse um deles: 
— Se me vós derdes aquela taça maior e melhor, eu vou buscar o alimento. 
E os outros aceitaram, e ele foi e trouxe que comer. E indo pelo caminho levando a comida, cuidou como poria nela veneno, de modo que, comendo-a os seus companheiros, morreriam e ficaria para ele tudo o que acharam no túmulo. E os três ladrões que ficaram, enquanto ele foi, falaram entre si e disseram: 
— Aquele era nosso companheiro, mas não quis ir buscar a comida sem que lhe déssemos a taça melhor. Matemo-lo e ficará para nós toda a fortuna. E disse um deles: 
— Como o mataremos sem perigo, pois ele é mais valente do que nós? 
Respondeu o outro e disse: 
— Quando ele vier, digamos-lhe que entre dentro e tome a taça; e quando entrar, tiremos o pau que segura as coberturas e elas cairão sobre ele e morrerá. 
E quando veio o outro fizeram assim e logo ficou morto. E eles disseram: 
— Comamos e bebamos e depois dividiremos tudo entre nós. 
E começarem a comer o que o outro trouxera, e morreram por causa do veneno. 
Esta história é a antepassada do conto de Eça O Tesouro. Verifiquemos agora o que há de comum entre as duas e o que há de novo no conto de Eça. Há muito de comum: a descoberta inesperada do tesouro, a questão urgente de as personagens se proverem de alimentos, o estratagema imaginado pela personagem que vai à procura da comida para ficar com todo o tesouro para si, o projecto dos que ficaram para eliminar o que foi à vila, a morte de todos e por fim a ironia da existência de um tesouro abandonado à espera de gente mais sensata que dele se queira gozar. 
Uma mudança muito significativa operada por Eça foi a do espaço físico e do meio histórico: colocou-os nas Astúrias, num século indeterminado, mas que corresponderá sem grande margem para dúvidas ao XVI ou XVII. Aos gatunos de origem correspondem agora uns fidalgotes arruinados, famintos e rudes. 
É um caso claro de expansão textual na base do processo da paráfrase. 
Há na história de Eça alguns aspectos que quadravam bem ao feitio do autor: a ironia é sem dúvida um deles, e já estava na história de origem; outro aspecto é o facto de ser uma história que envolve muito dinheiro, o que também é usual no romancista; por fim, também a ironia feita à Igreja, quando D. Rui, um dos três fidalgos, se imagina rico e a lamentar o desaparecimento dos irmãos, que agora queria matar, mas cuja morte douraria futuramente, colocando-a num cenário de guerra, o da luta contra os turcos. Este imaginar gratuito também é muito queirosiano.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Os Lusíadas", a batalha de Lepanto e D. Sebastião

Hoje vou recuar bastante no tempo, para o séc. XVI, pois pretendo falar da Batalha de Lepanto, que teve lugar em Outubro de 1571, e d’Os Lusíadas, que foram publicados no ano seguinte. O poema deve ter atingido a versão definitiva já no final do 1571, quando D. Sebastião, que nascera em 20 de Janeiro de 1554, ainda não teria completado 17 anos. Camões dedica-lho, mas fá-lo nuns termos que me parecem imperdoavelmente exagerados.
Rei desde os três anos, rei de facto desde os 14, D. Sebastião era em 1571 um jovem com um feitio não muito adequado à alta função que lhe cabia; mas repousavam sobre os seus ombros as esperanças de um Portugal independente, já que o próximo herdeiro do trono era o monarca castelhano. Era urgente que casasse, para poder ter herdeiros.
Face a estas condicionantes, é muito de estranhar o modo como Camões lhe fala na dedicatória da epopeia e depois nas estrofes finais do poema. Vamos recordar a dedicatória.
Depois de lhe chamar “bem-nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade”, o que estava certo, chama-lhe logo “certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade”, o que já não vinha muito a propósito, dadas as limitações económicas gritantes do país e as limitações do jovem rei. Mas o pior vem depois em catadupa: chama-lhe “novo temor da maura lança” (isto é, dos reinos mouros em geral, incitando-o à guerra), chama-lhe “poderoso Rei, cujo alto Império / O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, / Vê-o também no meio do Hemisfério, / E quando dece o deixa derradeiro” (ao modo do que se dizia do seu tio Carlos V), e sobretudo diz do moço rei que se espera dele “jugo e vitupério / Do torpe Ismaelita cavaleiro, / Do Turco Oriental e do Gentio / Que inda bebe o licor do santo Rio”. Isto é, mostra-lhe um campo de acção guerreira que vai da África do Norte ao império otomano e a toda a Índia.
Isto é de facto autêntica loucura. E a proposta é confirmada, ao menos em parte, no final do poema, quando o poeta o incita o jovem rei à guerra no Norte de África, dispondo-se a cantar-lhe nova epopeia com os feitos bélicos que aí praticasse. O Rei acabaria por ir e ficar Alcácer-Quibir, perdendo o país a independência.
É difícil de não concordar com a gravidade destas incitações irresponsáveis à actividade bélica, ainda por cima saídas da pena de quem tinha algum conhecimento do que era o campo da batalha.
Eu creio que actualmente a tendência é para reconhecer que Camões é mais genial na Lírica (sonetos, canções, éclogas, redondilhas, etc.) do que n’Os Lusíadas. De facto, a meu ver, a epopeia não responde satisfatoriamente a muitas questões que lhe podem ser dirigidas.
Disse atrás que a epopeia há-de ter ficado pronta talvez no final de 1571, mas pelo menos alguns meses antes de vir a público, pois o trabalho tipográfico na altura devia ser muito lento.
Nesses meses a cristandade católica estaria sob o efeito da grande, da extraordinária vitória obtida em Lepanto, em Outubro de 1571.
O sultão de Constantinopla prometia entrar a cavalo pela Basílica de S. Pedro, que então ainda não estaria bem terminada. A sua soberba era uma ameaça a que era urgente pôr algum cobro.
Depois de muitas negociações e dificuldades, lá se reuniu uma frota para enfrentar os turcos. A batalha decorreu junto a Lepanto, a sudeste da Grécia. Comandou a armada D. João de Áustria, um parente próximo de D. Sebastião, pois era filho, embora bastardo, do irmão da sua mãe, Carlos V. A frota turca era comandada por Ali-Pachá, que foi morto. A vitória católica foi grandiosa. Nem é bom pensar nas consequências que uma derrota poderia ter provocado…
A minha ideia é a de que Camões terá acreditado que D. Sebastião iria gozar, nas aventuras militares, duma protecção divina semelhante à que possibilitara a decisiva vitória do seu primo D. João de Áustria. Assim, certas afirmações da dedicatória fariam muito sentido; sem isso, não vejo que sentido façam.
Sobre a batalha de Lepanto, contam-se coisas extraordinárias. Por exemplo, que Nossa Senhora teria sido vista sobre a frota turca numa atitude que não augurava nada de bom; que o Papa Pio V, em Roma, sem receber notícia nenhuma de Lepanto, por altura da vitória, teria convidado os cardeais a irem agradecer com ele a Deus o êxito católico. A essa batalha está também associado o incremento da oração mariana do terço.
Encontra-se na Internet muita informação sobre a Batalha de Lepanto.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Os Viscondes de Azevedo

Há tempos eu mencionei aqui o nome do Visconde de Azevedo para dizer que ele assinava o prefácio do livro de Camilo A Divindade de Jesus. Hoje vou falar dele e da sua esposa. Começo pela Condessa.
Chamava-se D. Maria José Carneiro da Grã Magriço e nasceu a 6 de Agosto de 1804, na Póvoa de Varzim, na Casa dos Carneiros, e era bisneta de D. Benta da Grã Magriço, da Quinta de Balasar. Casou em 1827, um tempo muito pouco pacífico.
É curioso que, sendo uma mulher muito abastada, com numerosas propriedades em vários distritos, quis ser sepultada em Balasar: dispôs no testamento que o seu corpo fosse “envolvido em hábito de Santa Teresa (de Ávila), encerrado em caixão de chumbo e sepultado no jazigo da família que tem na freguesia de Balasar, deste concelho, onde repousam os restos mortais de sua mãe”.
A mãe chamava-se D. Francisca Henriqueta Coelho Fiúza Ferreira Marinho Falcão Sottomayor e foi senhora da Quinta da Espinheira (em S. Simão da Junqueira) e da Casa dos Coelhos, em Vila do Conde.
Contrariamente ao que dispôs no testamento, D. Maria José Carneiro da Grã Magriço não foi sepultada em Balasar, antes em Barcelos, “por a autoridade administrativa do Porto se opor a que fosse para Balasar, conforme era vontade da testadora”.
À sua morte, esta senhora deixou 400$000 para serem repartidos pelos pobres e miseráveis da vila da Póvoa de Varzim; outros 400$000 ao Hospital, mais 300$000 à Misericórdia. Deixou ainda 100$000 para os pobres de freguesias onde tinha propriedades, caso de S. Simão da Junqueira, Balasar e Lama.
Isto vem no jornal poveiro “Facho da Verdade”, em 7.1.1886.
A Quinta de Balasar ainda ficou mais alguns anos na posse de parentes dos Viscondes, que não tiveram filhos, mas depois foi vendida a um lavrador.
O seu marido (Vila Verde, 21/01/1809 - Porto, 25/12/1876), que dá nome a uma rua na Póvoa, não viveu à sombra dum nome feito pelos antepassados: foi um homem com intervenção activa no seu tempo. Interveio, ainda jovem, nas lutas liberais, ao lado dos realistas, interveio depois de passagem na política e foi sobretudo um sábio bibliófilo. Foi célebre a sua livraria. Seguindo Camilo, “tinha a singularidade fenomenal de ser sábio e rico”. Foi sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa e colaborador do Dicionário Bibliográfico de Inocêncio. Este dicionário é um monumento da cultura portuguesa.
Vejam-se ainda estas camilianas palavras sobre o Visconde de Azevedo:
“Era um homem de bem. Para lhe chamarem nas ga­zetas facínora, caipira, besta e ladrão, foi necessário que gover­nasse o distrito de Braga em 1845. Desde que esquivou, na poltrona da sua biblioteca, o osso sacro aos pontapés da política, volveu a ser, por comum assentimento de todos os partidos, um espírito recto, muito esclarecido e digno de exercer os cargos superiores do Estado”.
O Visconde de Azevedo mereceu recentemente um artigo na Biblos, Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa.
Ele tinha residências no Porto e Póvoa de Varzim, e naturalmente outras. No Porto e na Póvoa, reunia cenáculos culturais. Na casa do Porto, possuiu uma tipografia particular onde chegou a fazer imprimir algumas raridades bibliográficas em tiragens limitadas.
Escreveu alguma prosa de ficção, alguma poesia e artigos de apreciação crítica, traduziu Vergílio e Cervantes. Ajudou a salvar a Gramática da Linguagem Portuguesa, de Fernão de Oliveira, primeira gramática da nossa língua.
É curioso que tenha dirigido Cartas ao redactor da Gazeta de Portugal, refutando o que, a respeito da Vida de Jesus, de Renan, escrevera Pinheiro Chagas em artigo publicado na mesma Gazeta. Esta Vida de Jesus pretendeu contestar as bases da fé católica em Jesus Cristo. Eça de Queirós e outros deram-lhe grande crédito, embora se trate de um trabalho sem rigor científico.Em resumo, os Viscondes de Azevedo foram um ilustre casal que deve merecer uma grande atenção aos poveiros.

Ainda sobre o "Auto da Barca do Inferno"

Da vez passada falei do Auto da Barca do Inferno. Mas não expliquei donde originavam aquelas barcas ou mesmo a ideia de fazer o julgamento ali no cais, pois nada disto está no Evangelho. Vou tentar esclarecer isso hoje.
Esta peça vicentina tem um débito muito directo relativamente a uma obra antiga, intitulada Diálogos dos Mortos. Este livro foi escrito em grego, no segundo século da nossa era; o seu autor chamava-se Luciano, e era pagão.
Luciano imagina, de acordo com a mitologia grega, os mortos a chegarem a um rio, o rio Letes ou rio do esquecimento, que têm de atravessar na barca de Caronte para a morada dos mortos, que é o Hades ou os Infernos. No momento da travessia, está também presente Hermes, outro deus.
Entre os mortos que se apresentam a pedir passagem e os dois barqueiros, desenvolvem-se então diálogos com temas variados. Já se está pois a ver: o Auto da Barca do Inferno está muito próximo da obra de Luciano. De um modo mais em geral, porque se imagina também uma passagem fluvial da vida terrena para o Inferno ou para o Céu, e, mais em particular, está próxima dum desses diálogos, o X. Efectivamente, neste diálogo X ocorrem conversas que têm semelhanças muito chegadas com os que encontramos na obra de Gil Vicente.
Para quem achar isto estranho, lembro que há igrejas onde, no altar da Almas, se representam os mortos numa barca. Creio que tal representação existe na Matriz poveira, mas existe de certeza na Matriz vila-condense. Onde ela se vê também é no Juízo Final, de Miguel Ângelo.
É um modo visível, dito alegórico, de representar uma realidade invisível (onde evidentemente não há barca nenhuma).
Ouçamos uma amostra do diálogo X de Luciano:

CARONTE – Vou-vos explicar: é preciso que embarqueis nus, deixando todo o supérfluo na margem porque, assim como estais, dificil­mente o barco poderá receber-vos.
E tu, ó Hermes, trata, a partir de agora, de que nenhum deles seja recebido que não venha em pêlo, depois de deitar fora, como eu já disse, a bagagem. A pé firme, junto à escada, passa-os em revista; recebe-os, forçando-os a embarcar nus.
HERMES – Dizes bem e assim faremos. Quem é este que está em primeiro lugar?
MENIPO – Eu cá sou Menipo. Mas repara, ó Hermes, a saca e o cajado já foram lançados ao pântano. E o manto coçado nem sequer o trouxe, bem de propósito.

Neste diálogo os passageiros são todos homens e, ao contrário de Menipo, outros vêm ainda muito orgulhosos do que faziam em terra. Por exemplo, um filósofo aparece com a barba muito grande, que era um distintivo do grupo. Mas nem a barba ali escapa: tem de ser cortada. E com os restantes acontece coisa semelhante.
Na obra de Gil Vicente os mortos também trazem qualquer objecto que os individualiza pela actividade, cargo ou profissão que tinham exercido. Um nobre traz uma cadeira, que indica a sua superioridade face às outras classes sociais; um sapateiro traz as formas dos sapatos, um juiz traz autos…
Mas há diferenças face à figuração da mitologia que é preciso notar: em vez duma barca, em Gil Vicente, há duas, há também dois destinos, há um Anjo e um Diabo…
Mas vou ainda falar doutra obra que terá influenciado Gil Vicente. É uma pintura que data, muito provavelmente, de 1515, de dois antes de ser representado o Auto da Barca do Inferno e intitulada Inferno. Nesta pintura não há barcas nem Anjo, mas há muitos condenados e diabos.
Esta pintura é muito curiosa. Aqui há bastantes anos, por altura do décimo aniversário da morte de Flávio Gonçalves, se não erro, houve um crítico de arte, Dagoberto Markl, que escreveu sobre ela no boletim municipal. Prometeu até publicar sobre ela um livro inteiro. Mas creio que isso não chegou a acontecer.
Gil Vicente, como é sabido, escreveu também o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória.

Sobre o "Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente

Há uma obra de Gil Vicente que tem por título Auto da Barca do Inferno. É uma peça de teatro de tamanho relativamente reduzido e de que quase toda a gente gosta. Naturalmente uns gostarão por uma razão, outros por outra. Hoje vou falar das razões que me levam a valorizá-la.
Este auto – auto, neste caso, quer dizer mais ou menos peça de teatro – é o auto do julgamento após a morte. Em cena estão duas barcas, uma do Diabo outra do Anjo. Quando as personagens chegam àquele cais, todas ou quase todas ambicionam ir para a barca do Anjo, e quase todas acabam na do Diabo. Isto à partida parece que não deveria provocar muito entusiasmo pela obra.
O facto é que no julgamento se faz uma apreciação muito crítica da vida terrena, com bastante ironia pelo meio. Então, os leitores e espectadores, ao verem ser enviada para o Inferno toda aquela maldade, consideram que se faz justiça; e como também se faz ironia, acham graça.
Vão para o Inferno um Fidalgo presunçoso e tirano, um Sapateiro explorador, um Onzeneiro que emprestava dinheiro a um juro exorbitante, um Frade mundano, etc., etc.
Vejamos agora o que a mim me seduz.
Quando o auto começa, o Diabo diz que está uma maré maravilhosa: “À barca, à barca / que temos gentil maré!”, grita. Quer dizer, o seu barco tem condições para levar uma grande carga. Até corre vento para o empurrar.
E a verdade é que a maré lhe vai correr de feição e a sua barca vai encher. E é enquanto ela enche que assistimos a uma crítica impiedosa à sociedade dos vivos.
Só que, em dado momento, muito perto do fim do auto, o Diabo descobre que a maré passou: a barca, carregada, pousou no chão. O Diabo ainda tenta um expediente para a fazer andar: “Alto, todos apear / Que está em seco o batel!”
Mas desta vez pode-se dizer mesmo que aquele mal não vem só; decididamente a sua boa maré passou.
Logo a seguir, apresentam-se no cais quatro Cavaleiros. Ao contrário de todas as outras personagens anteriores, que recorriam a desculpas nada convincentes ou expedientes sem préstimo para evitar a barca do Diabo, estes Cavaleiros olham a situação dum modo inteiramente diferente. Consideram-se mártires da Fé e dirigem, em canto, um convite vibrante aos espectadores para que se não dêem a uma vida desregrada, mas pelo contrário vivam a sua religião com o maior e mais decidido empenho.
O Diabo, face a esta situação nova, sente-se desnorteado: os Cavaleiros não só não lhe ligam como lhe respondem duramente; o Anjo, esse, dá o melhor acolhimento a estes passageiros.
O auto termina aqui, quando o Diabo tem a sua barca encalhada, incapaz de seguir viagem, e quando os espectadores ouvem um vibrante de quatro nobres apelo a mudar de vida. É como que um novo começo.
Mas isto, para mim, ainda não é tudo. A questão, em meu entender, é esta: Gil Vicente foi capaz de fazer uma análise audaz, realista, impiedosa à sociedade sua contemporânea, enviando-a sem apelo para a barca do Diabo; mas, colocando-se numa perspectiva de grande autenticidade evangélica, acabou mostrando o caminho alternativo a seguir. E isto através duma cena cheia de cor, canto e emoção.
O realismo da análise, que aproxima muitas vezes este auto duma farsa, está lá, mas, globalmente, a obra é uma moralidade excelente.
É curioso que o Auto da Barca do Inferno date de 1517, o ano em que Lutero começou o seu protesto. Gil Vicente também se escandalizou com as pessoas do seu tempo, também foi duro, mas soube manter-se dentro da verdade da Igreja.
Isto, algo mais, é o que eu vejo neste auto e o que acho que o faz uma obra de rara qualidade.
Há uma outra obra de Gil Vicente, o Auto da Alma, também uma moralidade, que é considerada do melhor que se produziu no género na Europa do tempo. Mas eu tenho-me encantado mais com o Auto da Barca do Inferno.
Hoje falei deste auto; na próxima vez espero falar a propósito dele.

Darwin e o poema bíblico da Criação

Em Fevereiro completaram-se 200 anos sobre o nascimento de Darwin, o homem a quem se atribui a teoria da Evolução das Espécies. Darwin, que a princípio quis ser clérigo, no final da vida definiu-se como agnóstico, mas não como ateu. Os primeiros capítulos da Bíblia descrevem poeticamente a criação, afirmando que ela se processou ao longo de seis dias. Mas a teoria evolucionista afirma que as espécies animais surgiram ao longo de um processo de milhões de anos. O próprio Darwin declarou que se pode ser ardente teísta, isto é, crente, e evolucionista, confirmando a afirmação com casos de seus contemporâneos célebres. Desde que se aceite Deus como criador e providência, cabe à ciência estudar depois o processo evolutivo na sua área. Falemos por isso do Poema da Criação, que ocupa as páginas iniciais da Bíblia. Ele foi escrito próximo do ano 550 a.C., na Babilónia, a capital mais avançada do tempo, quase 100 anos antes de Platão nascer, quando os judeus se encontravam aí em exílio. É um texto cosmogónico, que conta imaginosamente a origem do universo e dos muitos seres que ele contém. O Poema da Criação apresenta-se como a réplica hebraica ao mito babilónico da criação e pode ter desempenhado na liturgia de Israel um papel paralelo ao que desempenhava aquele mito no culto de Marduk, nas festas do Ano Novo. Vejamos as frases inicias do poema: “No princípio, Deus criou os Céus e a Terra. A Terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: - Faça-se a luz! E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz e às trevas noite. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o primeiro dia. Deus disse: - Haja um firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam sob o firmamento. E assim aconteceu. Deus chamou céu ao firmamento. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o segundo dia”. O poema organiza-se numa espécie de «estrofes» rematadas por uma espécie de «refrão»: «Assim surgiu a tarde e em seguida a manhã: foi o primeiro dia», etc. Além do «refrão», contêm-se nas «estrofes» outros elementos de repetição: «Deus disse», «E assim aconteceu», «E Deus viu que isto era muito bom». A repetição é um elemento comum em qualquer poema. O texto é redondo, já que se pode dizer que começa e acaba pela mesma expressão «os Céus e a terra». Conclui com um fechamento muito claro: “Esta é a origem e a história da criação dos Céus e da Terra”. Estruturalmente, é um texto independente do que se lhe segue. Houve um autor, de nome Gilberto António de Andrade, que considerou que o poema bíblico da Criação poderia ser «um dos mais belos poemas da humanidade». Texto litúrgico que é, possui natural pendor «dramático»; quanto posso imaginar, visa a «representação», pede actores. Está muito longe do vulgar texto narrativo. Tematicamente, trata-se, poder-se-á dizer, de um texto de combate: há um só Deus e não muitos, como considerava a perspectiva babilónica; Deus cria sem recorrer a nada anterior, a partir do nada, pela sua palavra e por gosto; o homem é inteligente, livre e criativo, «à semelhança» de Deus; Deus oferece-lhe o Universo como palco da sua acção; não há lugar para as divinizações reais, faraónicas ou imperiais; a dignidade do homem é universal, bem como a da mulher; o sentido da vida exprime-se de um modo mais completo no descanso sabático, um dia santificado, de adoração e gratidão para com o Deus que ama o homem e para quem tão generoso mostra. É um texto profundamente revolucionário, pois impõe mudanças radicais no modo de olhar o homem e o mundo face ao que se praticava na Babilónia ou no Egipto, e profundamente optimista: “E Deus viu que tudo era muito bom”.

A Beata Alexandrina e a Segunda Guerra Mundial

Dentro de dias celebra-se o aniversário do nascimento da Beata Alexandrina; por isso eu hoje vou falar um pouco dela e a propósito dela. Em concreto, vou falar da Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, que ela pediu e que o Papa Pio XII realizou em 31 de Outubro de 1942.
Em finais do séc. XIX, tinha o mundo sido consagrado ao Coração de Jesus – e a basílica poveira tem certamente alguma coisa a ver com isso; agora pedia o mesmo Jesus que ele fosse consagrado ao Coração Imaculado da sua Mãe.
Convém lembrar que, na teologia católica, à Mãe de Deus é atribuído o papel mais importante: tendo dado à humanidade o Filho de Deus, Ela encontra-se no centro do plano salvador por Ele concretizado.
O primeiro pedido para essa consagração vem de 1935. A Igreja atravessava então na Espanha um momento muito difícil, que iria degenerar em guerra civil.
Confidenciava Jesus à Alexandrina que o que ali se verificava podia alastrar facilmente ao mundo e que era indispensável a intervenção da sua Mãe para suster a calamidade. E a verdade é que a guerra ganhava em breve dimensão mundial.
“Só Ela lhe poderá valer”, afirma taxativamente o Salvador: só Ela, a sua Mãe, poderia valer ao mundo.
Como disse, a Consagração ocorreu em 31 de Outubro de 1942. A Guerra Mundial estava em marcha e prometia: o Eixo somava vitórias: o centro da Europa estava todo sob o domínio de Hitler, o ataque japonês ao Porto das Pérolas datava de havia um ano.
Por essa altura, travava-se luta muito dura no Norte de África, particularmente a oriente, pelo acesso europeu às fontes do petróleo. Essa luta iria terminar com a vitória aliada em Alamein, no Egipto.

A Consagração terá mudado alguma coisa no vasto teatro desta guerra a que nenhuma anterior se igualava?
Há uma frase de Churchill que diz que até Alamein os aliados não tinham obtido nenhuma vitória, mas que depois não tinham sofrido nenhuma derrota. Ora isto é muito importante, por Alamein coincidir aproximadamente com a Consagração, pois significa que até à Consagração os aliados não tinham tido vitórias e que depois não sofreram derrotas. E esta Consagração destinava-se também a suster a guerra.
Na minha fraca pronúncia inglesa, eis a frase de Churchill, que eu só conheci muito recentemente: “Before Alamein we never had a victory. After Alamein we never had a defeat”.
Mas convém também ouvir o que um notável teólogo italiano afirmou sobre a consagração a que me venho a referir. O nome dele é Gabriel Roschini e “chamou à consagração da humanidade ao Imaculado Coração de Maria, em 1942, a maior honra que alguém pode imaginar”. “Ela é a mais alta manifestação do culto mariano”, afirmou.

Como se sabe, desde muito cedo, antes de 1935, Jesus anunciou à Alexandrina que iria fazer nela “grandes coisas”. Isto num tempo em que o seu nome era muito pouco conhecido. Era conhecido em Balasar e certamente nalgumas freguesias em redor e mesmo aqui um pouco na Póvoa, mas não mais.
É preciso também ter em conta que a tarefa de convencer o Papa a realizar a consagração era enorme: como é que uma camponesa paralítica, a viver num estreito quarto desde há dez anos, havia de mobilizá-lo para um acto destes?
O mundo não é Portugal, ou a Europa ou a Rússia. É a Terra toda. Mas mobilizou-o.
O que tenho estado a dizer são factos e algumas deduções. Mas as deduções estão muito próximas dos factos…
Um dia que a Póvoa reconheça todo o alcance deste feito vai certamente prestar uma grande homenagem a esta sua conterrânea, que nasceu e viveu em Balasar.