Da vez passada falei do Auto da Barca do Inferno. Mas não expliquei donde originavam aquelas barcas ou mesmo a ideia de fazer o julgamento ali no cais, pois nada disto está no Evangelho. Vou tentar esclarecer isso hoje.
Esta peça vicentina tem um débito muito directo relativamente a uma obra antiga, intitulada Diálogos dos Mortos. Este livro foi escrito em grego, no segundo século da nossa era; o seu autor chamava-se Luciano, e era pagão.
Luciano imagina, de acordo com a mitologia grega, os mortos a chegarem a um rio, o rio Letes ou rio do esquecimento, que têm de atravessar na barca de Caronte para a morada dos mortos, que é o Hades ou os Infernos. No momento da travessia, está também presente Hermes, outro deus.
Entre os mortos que se apresentam a pedir passagem e os dois barqueiros, desenvolvem-se então diálogos com temas variados. Já se está pois a ver: o Auto da Barca do Inferno está muito próximo da obra de Luciano. De um modo mais em geral, porque se imagina também uma passagem fluvial da vida terrena para o Inferno ou para o Céu, e, mais em particular, está próxima dum desses diálogos, o X. Efectivamente, neste diálogo X ocorrem conversas que têm semelhanças muito chegadas com os que encontramos na obra de Gil Vicente.
Para quem achar isto estranho, lembro que há igrejas onde, no altar da Almas, se representam os mortos numa barca. Creio que tal representação existe na Matriz poveira, mas existe de certeza na Matriz vila-condense. Onde ela se vê também é no Juízo Final, de Miguel Ângelo.
É um modo visível, dito alegórico, de representar uma realidade invisível (onde evidentemente não há barca nenhuma).
Ouçamos uma amostra do diálogo X de Luciano:
CARONTE – Vou-vos explicar: é preciso que embarqueis nus, deixando todo o supérfluo na margem porque, assim como estais, dificilmente o barco poderá receber-vos.
E tu, ó Hermes, trata, a partir de agora, de que nenhum deles seja recebido que não venha em pêlo, depois de deitar fora, como eu já disse, a bagagem. A pé firme, junto à escada, passa-os em revista; recebe-os, forçando-os a embarcar nus.
HERMES – Dizes bem e assim faremos. Quem é este que está em primeiro lugar?
MENIPO – Eu cá sou Menipo. Mas repara, ó Hermes, a saca e o cajado já foram lançados ao pântano. E o manto coçado nem sequer o trouxe, bem de propósito.
Neste diálogo os passageiros são todos homens e, ao contrário de Menipo, outros vêm ainda muito orgulhosos do que faziam em terra. Por exemplo, um filósofo aparece com a barba muito grande, que era um distintivo do grupo. Mas nem a barba ali escapa: tem de ser cortada. E com os restantes acontece coisa semelhante.
Na obra de Gil Vicente os mortos também trazem qualquer objecto que os individualiza pela actividade, cargo ou profissão que tinham exercido. Um nobre traz uma cadeira, que indica a sua superioridade face às outras classes sociais; um sapateiro traz as formas dos sapatos, um juiz traz autos…
Mas há diferenças face à figuração da mitologia que é preciso notar: em vez duma barca, em Gil Vicente, há duas, há também dois destinos, há um Anjo e um Diabo…
Mas vou ainda falar doutra obra que terá influenciado Gil Vicente. É uma pintura que data, muito provavelmente, de 1515, de dois antes de ser representado o Auto da Barca do Inferno e intitulada Inferno. Nesta pintura não há barcas nem Anjo, mas há muitos condenados e diabos.
Esta pintura é muito curiosa. Aqui há bastantes anos, por altura do décimo aniversário da morte de Flávio Gonçalves, se não erro, houve um crítico de arte, Dagoberto Markl, que escreveu sobre ela no boletim municipal. Prometeu até publicar sobre ela um livro inteiro. Mas creio que isso não chegou a acontecer.
Gil Vicente, como é sabido, escreveu também o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória.
segunda-feira, 1 de junho de 2009
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