quarta-feira, 27 de março de 2013

O aniversário do nascimento da Beata Alexandrina


Como estamos em dia do aniversário do nascimento da Beata Alexandrina, vou hoje falar dela e a propósito dela.
Verdadeiramente quem me recordou esta data foi o último número do boletim da Alexandrina Society, que recebi há dias. Como é seu costume, a associação promove 24 horas ininterruptas de adoração eucarística entre os dias 29 e 30. Penso que o convite para essa adoração foi a razão principal para fazerem sair o boletim. A iniciativa é a mais consentânea com o espírito da vida e obra da patrona da associação.
No boletim vinha uma notícia que interessa muito aos membros da Alexandrina Society, embora para nós o seu interesse seja menor: a viúva do fundador, que era do país de Gales e fora para a Irlanda quando casou, vai regressar à terra natal, deixando assim o secretariado. Fica a substituí-la uma tal Úrsula Coppinger, que se mostra muito determinada em prosseguir com a divulgação da Alexandrina.
Embora a publicação não apresente endereço de correio electrónico, o que é pena, apresenta ao cimo da página inicial o endereço dum site, o Balasar.net. Este site foi criado por um filho do fundador, o Patrick Reynolds.
Recebi recentemente o último livro da D. Eugénia Signorile também sobre a Beata Alexandrina. Talvez seja o vigésimo, o que faz dela e do seu falecido marido um especialíssimo caso de devoção e divulgação da Beata de Balasar. O livro tem pelo menos duas visíveis virtudes: é pequeno e o seu visual é cuidado. De base biográfica, procura evidenciar o carácter de alma vítima da Alexandrina.
Logo no princípio, atribui-se à biografada uma característica que a singulariza entre os santos que a Igreja beatificou ou canonizou: o seu nascimento foi pré-anunciado pela Santa Cruz, aparecida em Balasar em 1832.
E agora é da Santa Cruz que vou falar um pouco.
Primeiro que tudo, convém saber-se que sua aparição está garantida por documento fidedigno e que ocorreu duas semanas após o desembarque do Mindelo, que levaria à vitória dos liberais. Esta vitória teve consequências devastadoras para a Igreja. Implicou muito mais do que a extinção das ordens religiosas: D. Pedro IV, o irmão de D. Miguel, era maçónico e, ainda antes de vir para Portugal, ameaçou o Papa de lançar o país no cisma. E com a vitória, os liberais cumpriram a ameaça do seu rei entretanto falecido.
Eu tenho andado a tentar vislumbrar o que se passou por cá após Évora-Monte e parece-me que correspondeu ao eclodir duma violenta tempestade.
Colocado à frente da Diocese de Braga um agente dos liberais, o vigário capitular Loureiro, procedeu-se ao saneamento dos párocos opositores ao cisma. Não importavam muito as razões a invocar, sobretudo se se tratasse de paróquias com bastante rendimento.
E há um aspecto original nesta situação, os autores do cisma, que eram os liberais fanáticos, acusavam de cismáticos os sacerdotes ou até populares que recusassem o seu cisma. E nesta guerra de confusão de sentido da palavra, entravam agentes do governo e certamente câmaras.
No concelho da Póvoa, alargado a partir de 1837 para fronteiras próximas das actuais, houve duas freguesias que ousaram oferecer mais resistência ao cisma, Terroso e Rates. Pelo menos é o que se pode deduzir de alguns documentos de 1838.
Os terrosenses parecem ter levado a sua oposição até passar por cima das posições do pároco, que colaborava com o governo: terão chegado a baptizar crianças em casa. Em Rates, o pároco foi expulso logo no princípio de 1838, mas os ratenses não se deram por vencidos e continuaram a resistir. Veio, certamente do Porto, uma força militar, que começou por pacificar Terroso e que depois foi para Rates. Mas os moradores da freguesia, talvez também melindrados por lhes terem extinguido o concelho, não pararam. E foram ameaçados com a vinda duma força ainda maior. Não foi com certeza por acaso que, ao tempo da Maria da Fonte, eles se recusaram a entregar as armas de fogo…
As pessoas, que acorriam em tão grande número às festas da Santa Cruz, devem ter percebido que ela trazia uma mensagem de esperança no meio da tempestade que tudo queria derrubar.

quinta-feira, 14 de março de 2013

De novo a Maria da Fonte


Quando há alguns meses atrás aqui falei da Maria da Fonte na Póvoa de Varzim, não imaginava que havia um livro que historiava essa revolta em Vila do Conde. De facto há. Tem como título Maria da Fonte. A Sedição Popular em Terra de Marinheiros Poetas e Rendilheiras e é da autoria de Adelina Piloto. É certo que o título não menciona a Póvoa, mas, quando se folheia a obra, verifica-se que a parte final dele aborda os acontecimentos da vila vizinha.
O documento principal que guarda memória das movimentações revolucionárias de 1846 na Póvoa é a acta que já comentei, de 29 de Maio de 1846. Para a Vila, há um documento que compete em importância com a acta e é um relatório do administrador do concelho para o Governo Civil, de 24 de Abril. Estes documentos foram escritos com objectivos opostos.
O de Vila do Conde, que é anterior, pretende justificar o fracasso da tentativa revolucionária, enaltecer a actuação das autoridades e ilibar a participação popular do concelho. O da Póvoa, que data de quando a revolta já adquirira dimensão nacional e o governo fora substituído, pretende vincar o carácter geral, espontâneo e patriótico da movimentação dos “povos” do concelho.
Contradizendo-se e tendo objectivos opostos, eles devem-se complementar.
Passo a ler parte do documento vila-condense, dirigido ao governador civil:
Pela manhã do dia 23 (de Abril) se achavam os sublevados na Póvoa em força de 200 a 300 homens, uns armados de espingardas e outros de forcados e fouces, sendo eles pela maior parte das freguesias de Cristelo e para o nascente pertencente ao concelho de Barcelos, os quais me informam que na descida obrigam a gente que encontravam a acompanhá-los, pena de incendiar-lhes as casas. O comandante era um das Necessidades, que fora porta-bandeira das milícias, cujo nome ignoro, e até agora não sei de outros chefes.
Consta-me que na Póvoa fizeram auto na Câmara, mas pelo administrador daquele concelho melhor V. Ex.cia saberá o que lá houve.
Pelas três horas da tarde do mesmo dia de ontem, 23 do corrente, entraram os sublevados nesta vila dirigindo-se à casa da câmara e administração do concelho, aonde penetraram dando vivas a Sua Majestade a Rainha, à Religião, contribuições abaixo e morram os Cabrões.
Conta-se a seguir a escolha da nova câmara e vários outros actos dos revoltosos que já não nos interessam muito.
A Póvoa está mais próxima de Barcelos e de Braga, onde primeiro se fez sentir a revolta e por isso é bem possível que, como diz o administrador vila-condense, tivesse havido aí participação de barcelenses. Aliás, quase todas as freguesias poveiras tinham pertencido a Barcelos até poucos anos antes. A Vila, sobretudo a sul, está mais próxima do Porto, onde os efeitos da revolução se sentiram mais tarde e por isso a participação popular deve ter sido menor.
Não sendo de admitir como pura invenção o que o administrador escreve sobre as pessoas vindas de freguesias Barcelos, deve haver é exagero ao atribuir-lhe quase toda a causa dos acontecimentos, como deve haver exagero ao reduzir ao mínimo a participação das gentes da sua Vila.
O António José dos Santos, que, como disse da primeira vez, foi eleito administrador, já tinha servido aquele cargo em 1840 e 1841 e fora, ainda antes, administrador substituto.
Quando o administrador poveiro quis recolher as armas das populações, S. Pedro de Rates, ao menos num primeiro momento, resistiu à determinação da autoridade. De notar que se trata duma freguesia confinante com Barcelos.
Um notável poveiro que aderiu à revolta foi Francisco Gomes de Amorim.
O que acabo de dizer não dispensa a leitura do livro de Adelina Piloto, mas já dá uma visão mais completa do que foi esse fenómeno revolucionário de 1846, um caso raro pelo seu carácter espontâneo e popular. Quase todas as revoluções começam de cima e são depois vendidas ao povo.
Os historiadores insistem em que o móbil da revolta era a oposição popular a medidas dos Cabrais que no fim de contas eram progressistas. As coisas não devem ser bem assim: é preciso não esquecer que o poder era de inspiração maçónica e cometera verdadeiras atrocidades contra o catolicismo. Os vivas à Religião remetiam sem dúvida para essas humilhações da década anterior.

domingo, 3 de março de 2013

“O Mandarim” ou dinheiro, muito dinheiro…


Hoje vou falar de um pequeno livro de Eça de Queirós, O Mandarim. Eça insiste na ideia de que se trata duma obra fantasiosa. Mas nas obras de fantasia pode-se vazar a expressão dos anseios mais fundos do autor sem os constrangimentos que o confronto com a realidade impõe. Parece-me que é o caso.
O Mandarim é, sob muitos aspectos, um parente próximo d’A Relíquia. A mesma fantasia descabelada percorre um e noutro.
Conta o protagonista, Teodoro, um bacharel funcionário do Estado contemporâneo de Eça, a viver em Lisboa, que um dia estava a ler um livro e que encontrou lá umas frases que diziam que, se tocasse uma campainha – campainha que estranhamente estava ali à mão – morreria na China um mandarim mais rico que os reis da história ou da fábula e que ele, leitor, se tornaria dono de toda a sua imensa riqueza. Teodoro hesita por momentos, mas então o Diabo, que se encontra perto e em pose de cidadão comum e bem pensante, mostra-lhe que seria erro imperdoável recusar a oportunidade.
Tocada a campainha, de imediato nada acontece, mas, passadas semanas, começa a chegar de Londres e de Paris a fortuna do mandarim morto.
Se isto não é puro delírio, então não sei como se lhe há-de chamar.
Teodoro, que é novo, começa a realizar as suas ambições: instala-se principescamente, aceita relacionar-se com os poderosos do tempo e dá-se a uma vida de luxo e deboche.
Acontecem depois várias peripécias, nomeadamente uma atribulada viagem à China. O leitor não se dá conta do passar do tempo e por isso, quando chega ao final, descobre com alguma surpresa, que Teodoro se sente já velho e faz testamento. A quem deixa os sobrantes milhões? Como eles não o fizeram feliz, deixa-os ao Diabo.
Teodoro encerra assim a sua história:
E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: ‘Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!’
Parece uma confissão de arrependido, edificante, mas não é, pois ele continua:
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!
Nesta apóstrofe ao leitor, o protagonista evoca certo poema satânico de Beaudelaire. De facto, o livro é satânico desde as páginas iniciais até a este fim.
Talvez esta convicção de Eça, mas atribuída a Teodoro, sobre o poder do dinheiro seja mais um delírio seu e muitas pessoas recusassem tornar-se ricas com a morte alheia.
A mensagem deste livro está, menos descarada, em várias outras obras do autor. Por exemplo, no conto O Tesouro, Rui promove a morte dum irmão e mata o outro. Já pensa então numa vida de ostentação e deboche, à maneira do herói d’O Mandarim, e no modo como há-de justificar o desaparecimento dos irmãos assassinados no meio da mata: espalharia que tinham acabado na guerra contra o Turco e mandaria celebrar por eles abundantes sufrágios… Quando descobre que também fora traído, não tem nenhum rebate de consciência.
E que dizer do Raposão, protagonista d’A Relíquia? E que dizer do lugar do dinheiro n’A Cidade e as Serras? E n’Os Maias?
Eça escreveu uma vez que “a Arte é tudo. Tudo o resto é nada”. Devia estar sob um ataque de lirismo: então o dinheiro não é que é mesmo tudo – para ele?