quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Uma história de Natal

Como estamos perto do Natal, vou falar de Natal.
O Natal é a vinda do Filho de Deus até junto dos homens: “e encarnou e Se fez homem”. É portanto uma festa cristã.
O frenesim das compras nos supermercados e nas lojas não é Natal, não é Natal essa invenção nórdica divulgada por uma multinacional chamada pai-natal, não é Natal muito do que as pessoas dizem e fazem neste período, com muito comer e muitas prendas inúteis à mistura. Isso são produtos laterais associados ao Natal, já distantes do núcleo da celebração natalícia.
Em literatura, também só será natalício o que de facto contribuir para tornar mais claro o sentido do autêntico Natal. Ora há muita coisa escrita, em poesia e em prosa, que vai noutro sentido; mesmo no sentido de o obscurecer.
Há duas li um poema que começava assim:

Querem roubar-Te o Natal, Senhor.
Querem ficar com a festa,
mas não querem convidar o festejado.

Hoje vou recontar aqui uma história de Miguel Torga que tem surpreendente espírito do Natal.
Vem nos Novos Contos da Montanha e fala dum pobre, chamado Garrinchas, que fora pedir para fora da sua terra e que, no regresso, é surpreendido pela neve. Isso obrigou-o a acolher-se a uma ermida, uma capela, muito longe de casa, no monte. Então entrou, procurou papel e tábuas com que pudesse fazer uma fogueira no átrio. Mas passemos a palavra ao escritor:

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
— Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
— É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.


Antes de terminar, vou ler duas quadras de Natal da Beata Alexandrina:

Canta alegre, minha alma,
Vai nascer o Deus-Menino!
Foi só para dar-te o Céu,
Que Ele se fez pequenino.

Meu coração bateu asas,
Ao presépio foi poisar:
Dar-se todo a Jesus,
Para O servir e amar.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A Fonte de S. Pedro, em Balasar

Tanto quanto sei, a Lenda de S. Pedro de Rates é a grande lenda do concelho. No de Barcelos há pelo menos duas belas e conhecidas lendas, a do Galo e a do Monge e o Passarinho, no de Vila do Conde há a da Abadessa Berengária e a da Menina do Merendeiro. No da Póvoa, esta será a mais célebre.
Quando eu trabalhei na Alemanha, há quase 40 anos, vi numa casa um galo de Barcelos. Isto é, embora nascido da lenda, o galo tornou-se quase um símbolo de Portugal. Uma lenda pode ser coisa muito interessante.
Rates é uma terra muito antiga e que portanto a lenda pode mergulhar raízes nessa remotíssima antiguidade.
Mas os estudiosos concluíram que não é possível estabelecer de momento nenhum facto histórico que se possa assinalar como estando na origem da lenda: não há qualquer documento escrito fidedigno, não há nenhuma memória arqueológica que ateste a favor do pretenso santo.
Postas as coisas assim, fica-se no campo da pura lenda.
Quando as pessoas recontam esta lenda, referem três espaços: o de Rates, o de Braga e o do monte de S. Félix. De facto há um outro, a Fonte de S. Pedro, em Balasar. Pode-se dizer que ele tem um papel mínimo na história, e é verdade. Mas quando se estudam casos como este, à partida, a atenção não pode desinteressar-se de pormenores.
Veja-se o que se escreveu cerca de 1700, isto é, há 300 anos sobre a Fonte balasarense de S. Pedro:
“Na aldeia do Casal está a fonte em que São Pedro de Rates estava de joelhos, bebendo, quando os tiranos vinham atrás dele, de Braga, para o matarem, e foi Deus servido de que o não vissem, estando patente à vista. Dizem que duas covinhas que tem são de seus santos joelhos. Vêm a esta fonte muitos enfermos de maleitas e, bebendo dela, voltam livres do achaque”.
Em 1736 as Memórias Paroquiais dão notícia da fonte nestes termos:
“Bebem os moradores duma fonte a que dão o nome de S. Pedro de Rates: há aqui uma pedra com uma pegada estampada, a qual dizem ser do Santo de que a fonte tomou o nome; e, tirando a pedra em certa ocasião, dizem secara de todo e não lançara mais água senão quando se lhe tornou a pôr. Tem o povo grande fé com esta água e dizem que bebendo-a tira as maleitas, de que há repetidas experiências”.
Em 1758, escreveu-se: “Há nesta freguesia, no lugar do Casal, uma celebrada fonte, chamada de S. Pedro, cuja água é milagrosa para os doentes de sezões e terçãs, como se experimenta bebendo-a com fé e devoção ao mesmo Apóstolo”.
Está-se no campo da pura lenda. Mas lenda por lenda, a versão do P.e Carvalho da Costa era mais maravilhosa e completa.

Cavidades em pedras com desenhos vagamente semelhantes a partes do corpo humano impressionaram as mentes populares, gerando lendas. Curioso é que estas sofreram por vezes adaptações com as mudanças de pensamento religioso. No caso da Fonte de S. Pedro de Rates também é possível que tenha havido adaptação de algo anterior, o que de modo nenhuma a desvalorizaria, bem ao contrário.
É curioso aliás que com o S. Félix de Laundos também houve uma metamorfose: afinal o S. Félix eremita local é apenas um conhecido mártir, natural de Gerona, na espanha. O próprio S. Pedro de Rates é também um rosto do Apóstolo S. Pedro…

D. Gil Sanches

Quem criou a Póvoa – Póvoa de Varzim, pois antes existia a Vila de Varzim – foi D. Dinis, que foi um grande trovador. Quem fundou Santa Clara de Vila do Conde foi D. Afonso Sanches, que foi trovador e foi senhor da Póvoa de Varzim.
Mas agora podemos falar dum terceiro trovador, chamado D. Gil Sanches, que foi criado em Laundos. A descoberta não é minha, pois eu li isto num dicionário de literatura.
D. Gil Sanches era filho bastardo de D. Sancho I, por ser filho de Maria Pais Ribeiro, ou a Ribeirinha, de muito triste memória.
Dele só nos chegou um poema, que nem sequer é de qualidade muito notável. Mas tem uma particularidade que o faz notado: a sua antiguidade. Deve ser de cerca de 1230 e isso leva a que seja dos mais antigos que se conhecem na nossa língua.
O trovador dirige-se a alguém que vem de Montemor-o-Velho e pede-lhe notícias da sua amada. Começa assim:

Tu que ora vens de Monte-Maior,
Tu que ora vens de Monte-Maior,
Digades-me mandado de mia senhor,
Digades-me mandado de mia senhor.

A seguir fala da sua grande paixão.
Tem depois uns versos semelhantes aos anteriores, mas que acrescentam alguma coisa nova:

Tu que ora viste os olhos seus,
Tu que ora viste os olhos seus,
Digades-me mandado dela, por Deus,
Digades-me mandado dela, por Deus.

A novidade está principalmente na menção dos olhos da amada, que a representam.
Montemor-o-Velho, como se sabe, fica próximo da foz do Mondego, não muito longe de Coimbra.
Nenhum dos trovadores que mencionei foi homem de grande préstimo: D. Dinis e D. Afonso Sanches tiveram filhos fora do casamento, D. Gil Sanches pelos vistos era padre e tinha amante…

Venha daí!

"Venha daí!" é uma rubrica quinzenal que possuo na Rádio Onda Viva, da Póvoa de Varzim. Vou colocar aqui os textos que lá apresento e que serão predominantemente de história local e literatura. É uma rubrica de carácter cultural, mas ligeira.