quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Moisés


Vou falar de Moisés ou pelo menos a propósito de Moisés, o Moisés bíblico.
E começo por considerar a semana. Os Gregos e os Romanos não conheceram a semana, não tinham essa instituição que manda que se trabalhe durante seis dias e se descanse no sétimo, o que nos parece coisa tão natural. Em termos práticos, a semana foi criada por Moisés, que mandou ao povo de Israel que trabalhasse seis dias e no último descansasse e prestasse culto ao seu Deus.
A semana já era conhecida na civilização babilónia e tem origem física, astronómica, nas fases da Lua. Mas chegou ao nosso mundo ocidental através do cristianismo, que a recebeu do judaísmo.
Os nomes dos dias da semana em português são um caso único na Europa e talvez no mundo. Em espanhol, em italiano, em francês, em inglês e em alemão, pelo menos, esses nomes ainda conservam designações de origem pagã. São o dia do Sol, o dia da Lua, de Marte, etc. Em português, à parte o domingo, que é literalmente o dia do Senhor, e o sábado, que conserva o nome judaico, todos os outros são apenas feiras: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. É conhecido um santo, que foi arcebispo de Braga, que se bateu por retirar dos dias da semana os nomes dos deuses pagãos … Um dia espero falar dele.
O mundo ocidental, de base cristã, é monoteísta. O mundo islâmico também. Mas esses monoteísmos radicam ambos na lei de Moisés, sobretudo no primeiro mandamento dado no Sinai: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto”.
Ao longo da história de Israel o politeísmo dos países envolventes foi sempre uma tentação, mas sempre os profetas levantaram a sua voz na defesa do monoteísmo aprendido no Sinai.
No Egipto antigo, anterior a Moisés, já tinha havido uma experiência monoteísta, com o faraó Akénaton. O nome deste faraó não é o seu nome de origem: ele alterou-o em função do novo credo que impôs ao país.
Mas o monoteísmo de Akénaton era ainda idólatra, adorava o Sol ou o disco solar. O monoteísmo mosaico, de Moisés, exclui qualquer representação da divindade, qualquer idolatria. Isto é um avanço enorme: basta considerar o que se passou na Grécia ou em Roma. O povo israelita continuamente será tentado para a idolatria, para a adoração de um deus concretizado em imagens. Mas também os profetas continuamente apelarão para um monoteísmo ao modo do proposto por Moisés, sem imagens, em que o Criador não pode ser representado por qualquer ídolo.
No templo de Jerusalém, o Santo dos Santos era um espaço vazio. Ora era no espaço correspondente a esse que nos templos pagãos estava a estátua do deus, qualquer que ele fosse, qualquer que fosse o nome que se lhe atribuísse.
Os livros bíblicos que falam de Moisés são variados, mas o mais conhecido é o Êxodo, cujo título evoca a saída do Egipto. De facto, esse e os outros livros próximos, o Deuteronómio, o Levítico e os Números, falam da libertação dos Israelitas, da sua elevação a povo livre, da aliança de Deus com esse povo, etc.
Esses livros colocam-nos perante factos que têm a ver com o conceito original de epopeia. A epopeia é uma história antiga, mais ou menos lendária, que conta a formação de um povo, protegido pelos seus deuses ou pelo seu Deus. Figuram nela os grandes heróis nacionais, dotados de coragem, de determinação, de força exemplares, que beneficiaram da protecção divina. Lembrá-los é avivar o sentimento patriótico e a protecção que continua a ser dispensada a esse povo.
Nesta perspectiva, Moisés é o protagonista humano duma epopeia: liberta o povo oprimido pela maior potência então conhecida, dá-lhe uma lei para o reger, e Deus estabelece com esse povo uma aliança não só inabalável, mas projectada para o futuro.
E isto apesar das limitações dos homens, que repetidamente fraquejam; até Moisés. Este é um aspecto realista, de verdade humana que não deve ser ignorado pelo leitor do Êxodo.
Moisés afinal está muito mais próximo de nós do que pensaríamos: está no nosso sábado, no nosso domingo, nos outros dias da semana, no nosso modo de olhar o mundo, até próximo dum poema como Os Lusíadas.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Paio Peres Correia

Proponho-me falar hoje dum livro em espanhol que adquiri há poucas semanas. Foi publicado em Badajoz e o seu título reza assim: Pelay Pérez Correa. Historia y leyenda de un maestre santiaguista. É seu autor Manuel López Fernández. Pelay Pérez Correa é um tal Paio Peres Correia a que já me tenho referido. No seu século, o XIII, talvez não tenha havido nenhum homem na península, à parte algum rei ou santo, tão prestigiado como ele.
Se o autor do livro é natural da província onde os restos mortais de Paio Peres Correia estão sepultados, eu considero-me natural da terra onde ele nasceu. Paio Peres Correia é contemporâneo de Pedro Hispano, o português que foi o Papa João XXI durante alguns meses, e em parte contemporâneo também de Santo António.
Não há que lamentar que o autor do livro seja espanhol, pois Paio Peres Correia, que teve um papel relevante em Portugal, teve-o o ainda muito mais relevante em Castela.
Na Internet há uma recensão sobre esta obra, que vou passar a acompanhar com alguma liberdade.
O livro começa com um breve estudo sobre as origens da Cavalaria de Santiago para entrar rapidamente em aspectos pessoais do Mestre e na sua evolução dentro da instituição santiaguista.
Estudam-se com pormenor as suas actuações na Reconquista e mais à frente analisa-se a actuação política de Peres Correia junto de reis como Fernando III e Afonso X de Castela, Jaime I de Aragão, Afonso III de Portugal, ou  para com Henrique III de Inglaterra e o imperador Balduíno de Constantinopla em assuntos relacionados com as Cruzadas. Passa-se imediatamente a conhecer a relação do Mestre com a Santa Sé, com os dirigentes da igreja peninsular e com as outras ordens militares.
Vindo aos assuntos internos da Ordem,   estuda-se  a expansão territorial dos santiaguistas em tempos de Peres Correia, assim como a sua faceta legisladora e povoadora, para mergulhar logo a seguir nas vicissitudes ocorridas no seio da instituição durante o governo do Mestre. No capítulo final, segue-se o rasto de D. Paio  pela historiografia peninsular, impulsionado por ventos lendários mais que pelos seus êxitos temporais.
Por último acrescentam-se três apêndices: um documental, outro dedicado ao itinerário de Paio Peres Correia e o último deles para assinalar os principais comendadores e comendas da Ordem naqueles tempos.
Numa outra página também da Internet, Manuel López Fernández escreve: “O mestre Pelay Pérez Correa, como se chama nos documentos castelhanos, parece originário de Farelães, um couto próximo da cidade portuguesa de Braga”.
Acho isto muito pouco. O solar dos Correias não se chama de Farelães, mas de Fralães, não está longe de Braga, mas está mais perto de Barcelos, etc. Em vez de couto, era mais correcto falar de honra. Quanto à naturalidade do biografado, numa tese de doutoramento dever-se-ia ser um pouco mais exigente.
A capa do livro foi pensada a partir de iconografia portuguesa, em concreto, de uma pintura do MNAA a que se sobrepôs um retrato setecentista de Paio Peres Correia. A pintura, originária de Palmela, onde a Ordem de Santiago teve importante convento, representa uma suposta aparição de Nossa Senhora a Paio Peres Correia.
Em Paio Pires, no Seixal, ergueram uma estátua em tamanho um pouco mais que o natural, inspirada no retrato setecentista de Paio Peres Correia que agora mencionei. Dizem lá que Paio Pires é de facto Paio Peres Correia. Também em Setúbal há um monumento recente ao Mestre de Santiago.
A iconografia de Paio Peres Correia é mais abundante na Espanha. Na Praça Maior de Salamanca há um vistoso medalhão a representá-lo. Em Leão, na fachada dum convento, há um outro. Em Tentudia, onde a lenda colocou um milagre de dimensão bíblica, conseguido a pedido de Paio Peres Correia, num mosteiro desactivado, há um painel de azulejo quinhentista que o representa. Mas conhecem-se outras representações icónicas.
Hoje em dia cresce o interesse por esta figura medieval, motivado pelas jornadas sobre Ordens Militares que se têm repetido (ou pelo menos repetiram) em Alcácer do Sal, onde Paio Peres Correia iniciou a sua vida de cavaleiro de Santiago.
Recordo que no concelho da Póvoa de Varzim os documentos assinalam a presença de parentes deste cavaleiro medieval; é o caso da Aguçadoura e Balasar. A presença do pai em Balasar é particularmente importante.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma página de Camilo e a romagem a Santiago de Compostela


Há um livro de Camilo, A Filha do Arcediago, que conta um episódio passado em S. Simão da Junqueira, em Casal de Pedro. Não é coisa recomendável, mas decorre lá, numa estalagem depois conhecida como a Estalagem das Pulgas. Essa estalagem ficava à margem dum caminho de Santiago.
Começo então por falar da romagem a Santiago.
Eu passo os períodos de férias nas proximidades da Junqueira e de Bagunte. Isso permite-me testemunhar o que é ainda hoje a romagem a Santiago de Compostela naquelas paragens: é muito frequente, ao menos no Verão, ver passar romeiros, isolados ou em pequenos grupos. Há uma Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago cujo site fornece circunstanciada informação a estes peregrinos.
A romagem de sentido religioso é antiga: no mundo bíblico são conhecidas as subidas a Jerusalém; no mundo pagão, o santuário grego de Delfos era destino de muita romagem; no cristianismo foi vulgar a peregrinação quer aos lugares santos bíblicos quer a Roma, aos túmulos dos Apóstolos.
A romagem a Santiago também é antiga, mas não pode ter muito mais que uns mil anos, uma vez que a aleagda descoberta do túmulo do apóstolo remonta ao início do séc. IX. Mas terá sido ela que levou à criação duma série de mosteiros à margem do caminho de Santiago não longe de nós: talvez Leça do Balio, certamente o Mosteiro de Moreira, na Maia, o de Vairão, o de S. Simão da Junqueira e o de Rates. A própria Ponte d’Ave, que vem do início do séc. XIII, terá débito a esse fluxo de romagem.
Eu não conheço quase nada sobre os documentos antigos dos mosteiros que acabei de mencionar, com excepção do da Junqueira. É curioso que nos deste se fale de “lugar santo”. Certa doação é feita “ao lugar dos Santos Apóstolos Simão e Judas e outras relíquias que aqui se conservam”. Com bastante clareza, estava-se a pretender promover o mosteiro como destino de romagem.
Venhamos agora à página de Camilo. A narrativa fala dum homem em viagem que se acolhe à estalagem de Casal de Pedro, mas que é perseguido pela justiça e traz consigo uma amante. À noite, a polícia aparece e, muito ao modo camiliano, ocorre na estalagem uma mortandade: morrem dois polícias e a amante do fugitivo. Este contudo consegue escapar-se.
O episódio permite ao autor recordar tempos em que pernoitou na mesma estalagem, com certeza aquando da Maria da Fonte e da Patuleia. Mais vale ouvi-lo:
Nesse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas netas eu encontrei trinta anos depois, pulgas enormes e ferozes, que arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exaurem as artérias dum sangue azedado pelo maldito vinho, que a estalajadeira vos ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mezinha para matar as bichas dos pequenos.
Pernoitei aí uma vez na minha vida. Compreendi, no quarto que me deram, os suplícios do cristão primitivo atirado ao circo. «Cristão às pulgas!» deveria ser, no império romano, um grito de prazer para o paganismo sanguinário, como o fatal «Cristão às feras!»
[…]
Nesse mesmo quarto, às duas horas da noite, também o senhor Augusto Leite recebeu uma inesperada visita; […]. Eram oito soldados de cavalaria, comandados por aquele estúrdio cadete, que o leitor conhece, e reforçados por alguns meirinhos do corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças”.
Ocorre depois a mortandade que já referi. Conta depois Camilo:
Os três cadáveres foram enterrados no adro da igreja paroquial, porque o vigário duvidou sepultá-los em sagrado, visto que não traziam sinal de cristãos, como cruz, nóminas, bentinhos, verónicas ou outro qualquer distintivo da fé católica.
A seguir o escritor faz a “relação das pessoas que já morreram neste romance”, a saber: o mestre de latim, a senhora Escolástica, o arcediago, uma velha da viela do Cirne cujo nome me não lembra, o senhor António José da Silva, Antónia Brites, amante de Augusto Leite, dois soldados de cavalaria. Soma total: 8.
E avisa em tom de muito mau gosto: “Continuarão a morrer convenientemente”.
Também ele havia de morrer à lei da violência, muito inconvenientemente.
E fico por aqui, com estas frases de Camilo e com alguma notícia da romagem actual a S. Tiago de Compostela.