quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma página de Camilo e a romagem a Santiago de Compostela


Há um livro de Camilo, A Filha do Arcediago, que conta um episódio passado em S. Simão da Junqueira, em Casal de Pedro. Não é coisa recomendável, mas decorre lá, numa estalagem depois conhecida como a Estalagem das Pulgas. Essa estalagem ficava à margem dum caminho de Santiago.
Começo então por falar da romagem a Santiago.
Eu passo os períodos de férias nas proximidades da Junqueira e de Bagunte. Isso permite-me testemunhar o que é ainda hoje a romagem a Santiago de Compostela naquelas paragens: é muito frequente, ao menos no Verão, ver passar romeiros, isolados ou em pequenos grupos. Há uma Associação dos Amigos do Caminho Português de Santiago cujo site fornece circunstanciada informação a estes peregrinos.
A romagem de sentido religioso é antiga: no mundo bíblico são conhecidas as subidas a Jerusalém; no mundo pagão, o santuário grego de Delfos era destino de muita romagem; no cristianismo foi vulgar a peregrinação quer aos lugares santos bíblicos quer a Roma, aos túmulos dos Apóstolos.
A romagem a Santiago também é antiga, mas não pode ter muito mais que uns mil anos, uma vez que a aleagda descoberta do túmulo do apóstolo remonta ao início do séc. IX. Mas terá sido ela que levou à criação duma série de mosteiros à margem do caminho de Santiago não longe de nós: talvez Leça do Balio, certamente o Mosteiro de Moreira, na Maia, o de Vairão, o de S. Simão da Junqueira e o de Rates. A própria Ponte d’Ave, que vem do início do séc. XIII, terá débito a esse fluxo de romagem.
Eu não conheço quase nada sobre os documentos antigos dos mosteiros que acabei de mencionar, com excepção do da Junqueira. É curioso que nos deste se fale de “lugar santo”. Certa doação é feita “ao lugar dos Santos Apóstolos Simão e Judas e outras relíquias que aqui se conservam”. Com bastante clareza, estava-se a pretender promover o mosteiro como destino de romagem.
Venhamos agora à página de Camilo. A narrativa fala dum homem em viagem que se acolhe à estalagem de Casal de Pedro, mas que é perseguido pela justiça e traz consigo uma amante. À noite, a polícia aparece e, muito ao modo camiliano, ocorre na estalagem uma mortandade: morrem dois polícias e a amante do fugitivo. Este contudo consegue escapar-se.
O episódio permite ao autor recordar tempos em que pernoitou na mesma estalagem, com certeza aquando da Maria da Fonte e da Patuleia. Mais vale ouvi-lo:
Nesse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas netas eu encontrei trinta anos depois, pulgas enormes e ferozes, que arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exaurem as artérias dum sangue azedado pelo maldito vinho, que a estalajadeira vos ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mezinha para matar as bichas dos pequenos.
Pernoitei aí uma vez na minha vida. Compreendi, no quarto que me deram, os suplícios do cristão primitivo atirado ao circo. «Cristão às pulgas!» deveria ser, no império romano, um grito de prazer para o paganismo sanguinário, como o fatal «Cristão às feras!»
[…]
Nesse mesmo quarto, às duas horas da noite, também o senhor Augusto Leite recebeu uma inesperada visita; […]. Eram oito soldados de cavalaria, comandados por aquele estúrdio cadete, que o leitor conhece, e reforçados por alguns meirinhos do corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças”.
Ocorre depois a mortandade que já referi. Conta depois Camilo:
Os três cadáveres foram enterrados no adro da igreja paroquial, porque o vigário duvidou sepultá-los em sagrado, visto que não traziam sinal de cristãos, como cruz, nóminas, bentinhos, verónicas ou outro qualquer distintivo da fé católica.
A seguir o escritor faz a “relação das pessoas que já morreram neste romance”, a saber: o mestre de latim, a senhora Escolástica, o arcediago, uma velha da viela do Cirne cujo nome me não lembra, o senhor António José da Silva, Antónia Brites, amante de Augusto Leite, dois soldados de cavalaria. Soma total: 8.
E avisa em tom de muito mau gosto: “Continuarão a morrer convenientemente”.
Também ele havia de morrer à lei da violência, muito inconvenientemente.
E fico por aqui, com estas frases de Camilo e com alguma notícia da romagem actual a S. Tiago de Compostela.

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