sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Aí vai "ma pensée intime"

Por trás da estátua de Eça de Queirós que está na Praça do Almada, vê-se uma espécie de alta coluna quadrangular, como uma estela, onde se lê uma longa citação do romancista, que começa assim:
A arte é tudo. Tudo o resto é nada.
A meu ver isto é apenas um exagero. Nem todos somos artistas, mas todos somos alguém. Além da arte, há muito mais em que cuidar à face da Terra. A bondade, a generosidade, a solidariedade, a religião, a política, as crianças, os jovens, os novos e os velhos, a vida em geral, etc.
Mas há hoje muitas pessoas para quem as palavras arte e artista têm um encanto único. Um artista aparece-lhes logo como um modelo: de pensamento, de humanidade, das mais diversas qualidades. Ora, infelizmente, no geral as coisas não se passam assim. Poucos de nós estariam interessados em ser vizinhos de muitos dos ditos artistas.
Há muitos anos, ouvi uma professora a dizer que se devia eliminar da biografia dos literatos certos documentos, isto é, certos textos onde as suas qualidades morais descem a um nível muito baixo. É claro que isso só pode ser um enorme disparate: tais documentos são muitas vezes chave para nós entendermos muito do que escreveram.
Consideremos agora certa carta de Eça de Queirós, dirigida ao seu amigo Ramalho Ortigão. Era ela a que a tal professora se referia.
Veja-se este fragmento:
- Além do escândalo - quero dinheiro. Se o Primo Basílio se vendeu - por que se não há-de vender a Batalha do Caia? Cuida V. que lhe hão-de faltar os episódios picantes, lúgubres, voluptuosos, épatants? Pas si bête. Há-de ter de tudo: um salmis d'horreurs. O burguês gosta da rica cena de deboche? Há-de tê-la: somente desta vez é a sua própria filha violada, em pleno quintal, pelo brutal catalão dos dragões de Pavia: - a sua própria filha, a quem outrora Bulhão Pato murmurava: Lembras-te ainda dessa noite, Elisa? Portanto - se o livro se vende - por que não hei-de fazer especulação e tratar de pagar as minhas dívidas? Donc, résumons: choque eléctrico ao porco, e dinheiro para bebé (bebé c'est moi).
Eu não vou comentar isto, que tem um contexto bem concreto e conhecido. Mas no mínimo não condiz com o alto conceito de arte da citação da estátua. Acrescento ainda mais um outro fragmento da carta:
O que resta é isto - e aí vai ma pensée intime - é que a ideia publicada ou inédita é um capital: esse capital tenho direito a ele, que me venha do Chardron (ou do público, melhor) pela publicação, ou que me venha do Governo pela proibição - é-me indiferente: e Você está por esta encarregado de fazer produzir capital à ideia.
Amigo, leia com atenção este volumoso documento - e responda logo o que fez, e o que se decidiu. O que eu não quero é que a ideia fique improdutiva.
Bocage, uma vez, arrependido do que tinha escrito, bradou: “Rasga meus versos!” Estava certo.
A pequenez moral campeia por todo o lado. Ninguém se livra dela só por ser artista.
Vou terminar com parte dum poema de Álvaro de Campos:
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
De facto, somos todos bastante irmãos.