sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Aí vai "ma pensée intime"

Por trás da estátua de Eça de Queirós que está na Praça do Almada, vê-se uma espécie de alta coluna quadrangular, como uma estela, onde se lê uma longa citação do romancista, que começa assim:
A arte é tudo. Tudo o resto é nada.
A meu ver isto é apenas um exagero. Nem todos somos artistas, mas todos somos alguém. Além da arte, há muito mais em que cuidar à face da Terra. A bondade, a generosidade, a solidariedade, a religião, a política, as crianças, os jovens, os novos e os velhos, a vida em geral, etc.
Mas há hoje muitas pessoas para quem as palavras arte e artista têm um encanto único. Um artista aparece-lhes logo como um modelo: de pensamento, de humanidade, das mais diversas qualidades. Ora, infelizmente, no geral as coisas não se passam assim. Poucos de nós estariam interessados em ser vizinhos de muitos dos ditos artistas.
Há muitos anos, ouvi uma professora a dizer que se devia eliminar da biografia dos literatos certos documentos, isto é, certos textos onde as suas qualidades morais descem a um nível muito baixo. É claro que isso só pode ser um enorme disparate: tais documentos são muitas vezes chave para nós entendermos muito do que escreveram.
Consideremos agora certa carta de Eça de Queirós, dirigida ao seu amigo Ramalho Ortigão. Era ela a que a tal professora se referia.
Veja-se este fragmento:
- Além do escândalo - quero dinheiro. Se o Primo Basílio se vendeu - por que se não há-de vender a Batalha do Caia? Cuida V. que lhe hão-de faltar os episódios picantes, lúgubres, voluptuosos, épatants? Pas si bête. Há-de ter de tudo: um salmis d'horreurs. O burguês gosta da rica cena de deboche? Há-de tê-la: somente desta vez é a sua própria filha violada, em pleno quintal, pelo brutal catalão dos dragões de Pavia: - a sua própria filha, a quem outrora Bulhão Pato murmurava: Lembras-te ainda dessa noite, Elisa? Portanto - se o livro se vende - por que não hei-de fazer especulação e tratar de pagar as minhas dívidas? Donc, résumons: choque eléctrico ao porco, e dinheiro para bebé (bebé c'est moi).
Eu não vou comentar isto, que tem um contexto bem concreto e conhecido. Mas no mínimo não condiz com o alto conceito de arte da citação da estátua. Acrescento ainda mais um outro fragmento da carta:
O que resta é isto - e aí vai ma pensée intime - é que a ideia publicada ou inédita é um capital: esse capital tenho direito a ele, que me venha do Chardron (ou do público, melhor) pela publicação, ou que me venha do Governo pela proibição - é-me indiferente: e Você está por esta encarregado de fazer produzir capital à ideia.
Amigo, leia com atenção este volumoso documento - e responda logo o que fez, e o que se decidiu. O que eu não quero é que a ideia fique improdutiva.
Bocage, uma vez, arrependido do que tinha escrito, bradou: “Rasga meus versos!” Estava certo.
A pequenez moral campeia por todo o lado. Ninguém se livra dela só por ser artista.
Vou terminar com parte dum poema de Álvaro de Campos:
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
De facto, somos todos bastante irmãos.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O P.e Leopoldino Mateus

Vou hoje falar dum padre poveiro, o P.e Leopoldino Mateus. Foi um homem que esteve presente em momentos relevantes para a sua terra.
O P.e Leopoldino nasceu na Lapa, próximo do castelo, de família muito humilde, em 7 de Janeiro de 1879 e aí morreu em 1966.
Celebrou a sua primeira missa na Igreja Paroquial da Póvoa no dia 28 de Setembro de 1901. No dia 1 de Janeiro de 1902, entrou para capelão do Senhor dos Navegantes, nas Caxinas, até Outubro de 1906, em que foi admitido como capelão da Confraria das Almas, de novo na Póvoa.
A 8 de Agosto de 1908, foi nomeado coadjutor do pároco poveiro, lugar que desempenhou com zelo e actividade, ininterruptamente, até 1933, quando foi como pároco para Balasar.
Se há muitas coisas da biografia do P.e Leopoldino que conhecemos razoavelmente, outras há, e importantes, que conhecemos mal. Estou a pensar na sua actividade de jornalista.
Em 1929, quando fez 50 anos, escreveu-se que ele era redactor efectivo do considerado semanário local «A Voz do Crente», colaborador de «A Defesa» e do «Comércio da Póvoa de Varzim», do «Mensageiro Eucarístico» de Braga e correspondente do importante diário católico de Lisboa «As Novidades» e do semanário do Porto «A Ordem».
A Voz do Crente de 4 de Janeiro chamou-lhe “orador sagrado, ilustre e primoroso jornalista e nosso colaborador assíduo e dedicado” e acrescentava que no desempenho das funções do seu ministério, o Rev. Leopoldino Mateus, era diligente e canseiroso, desenvolvia uma actividade pasmosa e modelar. “Apesar disso nunca o tempo lhe falta para nos prestar os seus valiosos e apreciáveis serviços”.
A redacção aproveitava este ensejo para lhe tributar “o nosso agradecimento pela sua boa colaboração e prestar-lhe a nossa solidariedade jornalística contra as insinuações baixas e torpes com que alguns pretensiosos, cheios de orgulho e presunção, têm tentado ofuscar o brilho das suas primorosas crónicas, cheias sempre da mais sã doutrina”.
Isto, que é muito, não é tão esclarecedor como se desejaria. Sabe-se que era um orador requisitado, mas quase mais nada sabemos da sua oratória. Do seu jornalismo, sabemos mais, mas é pouco, se tivermos em conta o muito que escreveu. A gente vai aos jornais de então, sabe que ele dava a sua colaboração para eles, mas não encontra escritos com a sua assinatura. De facto, houve muita coisa, mesmo muita que ele não assinou.
Por exemplo, a seguir à República ele escreveu semanalmente para O Poveiro. Mas sabemos isso principalmente pelos seus adversários, pelas reacções provocadas. Mas, se vamos folhear o jornal, quase não encontramos rasto da sua presença.
Em 1925, foi secretário do Congresso Eucarístico Diocesano que decorreu aqui na Póvoa.
Desconhecem-se as razões concretas por que foi ele o escolhido para ir paroquiar Balasar, quando já tinha 54 anos e estava no auge da sua actividade jornalística. Mas para esta freguesia deve ter sido um motivo de orgulho.
Estamos hoje em crer que será ele o autor duma série de treze artigos, começados a sair logo em 1933, no A Propaganda, sobre a Santa Cruz de Balasar. O autor deles assina apenas por Z e diz-se conterrâneo e amigo do P.e Leopoldino. Quem mais haveria de ser senão ele, para conhecer tão bem o documento existente no cartório da paróquia? Depois, quando o P.e Leopoldino escreveu para o Boletim Cultural sobre o mesmo tema, não mencionou tais artigos, o que seria muito incorrecto se não fosse o autor deles.
No mesmo jornal, a partir de então, há um correspondente de Balasar muito assíduo. Não queremos logo dizer que fosse o pároco, mas supomos que o faria por estímulo do mesmo pároco e que seria balasarense Cândido Manuel dos Santos.
Havia muito a dizer sobre o P.e Leopoldino, que nalguns anos finais da vida viveu tempos de verdadeira miséria. Neste momento, passamos-lhe a palavra. Um dia, ainda em Balasar, sentindo que as forças lhe iam definhando, disse à Beata Alexandrina:
“Alexandrina, parece-me que vou deixar-vos, porque me não sinto com alento para o pesado ónus desta longa freguesia.
A doente calou-se, mas, volvidos alguns dias, antes de lhe dar o Pão da Vida, ao abeirar-me do seu leito, diz-me:
- Senhor Abade, não receie perder o vigor para deixar a freguesia; porque pedi a Nosso Senhor que eu morresse antes de V. Rev.cia nos deixar e Ele prometeu-me que sim, e a sua palavra não falta.
E assim sucedeu”.

A República na Póvoa de Varzim - 3

Hoje vou concluir esta informação sobre a extinção das casas de religiosos que em 5 de Outubro estavam activas na Póvoa. Falta falar da partida das Irmãs de Caridade.
As Irmãs da Caridade de S. Vicente de Paulo tinham vindo para o Hospital da Misericórdia da Póvoa de Varzim em 1 de Outubro de 1890, em condições bastante precárias, como informa Bernardino Faria em artigo saído na revista “Póvoa de Varzim” de Outubro de 1913. Na altura já o anticlericalismo grassava na Póvoa:
“Na rua, transitavam invariavelmente aos pares, quase sempre por caminhos os mais curtos e escusos, esquivando-se dos lugares onde houvesse pessoas que as incomodassem e, principalmente quando para cá vieram, o rapazio e até adultos as surriavam bastante, com ditos mais ou menos picantes como os seguintes:
- As Irmãs de Caridade… pum!
Elas, com a vista baixa, lá seguiam o seu caminho, sem protesto ou indignação. E só raríssimas vezes respondiam, risonhas e amáveis”.
A este propósito, lemos num jornal poveiro que uma vez uma das irmãs andava a pedir e dirigiu-se a um vendedor de peixe, que lhe escarrou na mão. Então ela, limpou-a e continuou:
- Isso foi para mim, agora dê-me alguma coisa para os meus pobres.
Isto nem precisa de comentários.
Mas continuemos a ouvir Bernardino Faria:
“Com o advento da República Portuguesa, e no sábado 8 de Outubro de 1910, tiveram conhecimento as irmãs que a autoridade administrativa por ordens superiores as não deixava continuar com hábitos talares (entenda-se, hábito). Algumas distintas senhoras desta vila, logo que souberam do facto, lhes enviaram diversas roupas e por sua vez a mesa de então ordenou que comprassem fazendas e fizessem as roupas que faltavam, para que trajassem civilmente, persuadidas que ficariam continuando com o seu mister. Porém, logo na segunda-feira, 10 do mesmo mês, foram elas avisadas pelo Sr. Administrador do Concelho que não podiam continuar mais ali, nem mesmo com outras vestes.
Imagine-se os apuros e sustos das irmãs, receosas de serem presas; e, atarantadas e chorosas, partiram nesse mesmo dia até às duas horas da tarde, à excepção da velha Esperança, cozinheira da primitiva, quase inutilizada e sem família que a recebesse, que ficou e foi depois admitida como asilada, mas ultimamente também retirou para parte incerta.
As irmãs que estavam no hospital por ocasião da expulsão eram:
Superiora – Carolina da Apresentação; cozinheira – Maria dos Anjos; dos asilados – S. Boaventura
Banco – Francisca; medicina (homens) – S.to Ângelo; medicina (mulheres) – Socorro; cirurgia (mulheres) – Firmina; velha cozinheira – Esperança”
Este procedimento republicano discriminatório é evidentemente inaceitável em qualquer parte do mundo, sem nenhuma desculpa, mas condiz com a lamentável orientação ideológica dos vitoriosos de 5 de Outubro. O administrador que mandou sair as Irmãs foi o médico João Pedro de Sousa Campos.
Estas religiosas não saíram “espontaneamente”.
Há uma curiosidade histórica, aliás muito relevante, sobre as Irmãs de Caridade em Portugal. Depois da extinção das ordens religiosas em 1834, elas tinham vindo em 1857, para tratar da educação dos órfãos, filhos das vítimas das últimas epidemias que haviam assolado o país. A aceitação por parte das populações não podia ser mais benévola e os resultados educativos excelentes. Mas a Maçonaria interveio em breve e deu origem a uma violenta campanha contra elas. A questão abalou as estruturas governativas da nação, pois nela se envolveram membros do Governo, o Cardeal, a imprensa, etc. Até Alexandre Herculano. Por fim, o governo francês enviou ao Tejo o navio de guerra Orénoque que levou para França todas as Irmãs, em 9 de Junho de 1962.
Naturalmente, regressaram mais adiante, para se encontrarem na Póvoa desde 1890.
O centenário da República devia ser ocasião para o país se reconciliar com o passado, homenageando as vítimas que este regime provocou no seu início. Muitas passaram no exílio lá para treze anos.

A República na Póvoa de Varzim - 2

Da vez passada, falei da expulsão dos Jesuítas poucos dias depois de proclamada a República, hoje vou falar da partida das Irmãs Doroteias para o exílio. Os Jesuítas partiram na sexta-feira, dia 7, as Doroteias partiram no sábado, dia 8. Vimos que da partida dos Jesuítas havia um relato mais ou menos circunstanciado, das Doroteias, se há, não o conheço.
Naquela altura havia na Póvoa seis ou mais jornais, um deles, O Poveiro, estava afecto ao Prior. É nele que se lê, na edição do dia 11, terça-feira, esta notícia:
“No sábado último, os noviços do convento dos Franciscanos da freguesia de Barqueiros, lugar das Necessidades, concelho de Barcelos, cujo convento é filial do de Varatojo e Montariol, de Braga, embarcaram na estação do cominho de ferro de Laundos, para os lados de Famalicão, não se sabendo o destino que tomaram; mas provavelmente para irem para as casas das suas famílias.
No mesmo comboio, em direcção às Fontainhas (em Balasar), embarcaram as Doroteias da Póvoa, disfarçadas.
Daquela estação dirigiram-se à freguesia de Gueral, concelho de Barcelos, para casa duma educanda que eles (sic) tinham fanatizado, e onde se encontram até verem no que param as coisas”.
É debandada.
Porque é que as Irmãs Doroteias iam disfarçadas? Havia no país, e também na Póvoa, um anticlericalismo antigo, que os republicanos, agora vitoriosos, tinham acirrado muito. Nenhum membro de ordem ou congregação religiosa se podia considerar seguro. Isto faz lembrar situações que a gente conhece vagamente da imprensa, passadas em África ou na Ásia; mas passou-se também em Portugal no início do séc. XX.
Para que não fiquem dúvidas, veja-se um pouco da letra do decreto de 8 de Outubro, sábado:
“Art. 1.º - Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1750, promulgada sob o regime absoluto e pela qual os jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos, e se mandou que efectivamente fossem expulsos de todo o país e seus domínios «para neles mais não poderem entrar»”.
Isto é o anticlericalismo, a discriminação em estado puro. Não se pergunta se este ou aquele cometeu algum crime, não: se é jesuíta, fica desnaturalizado, proscrito e não pode entrar mais em Portugal. Devia ser um crime muito grande ser jesuíta…
“Art. 3.º- Continua também a vigorar como lei da República Portuguesa o decreto de 28 de Maio de 1834, promulgado sob o regime monárquico representativo, o qual extinguiu em Portugal, Algarve e ilhas adjacentes e domínios portugueses todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens religiosas fosse qual fosse a sua denominação ou regra”.
Este decreto evoca leis de 1834 que tinham a ver com uma situação radicalmente diferente da que se vivia em 1910. Nesta data as ordens religiosas não eram senhoras daqueles bens que haviam possuído ao longo dos séculos. Nada que se parecesse. Então as casas da Póvoa…
É um pouco irónico que o autor destas leis, Afonso Costa, tenha acabado no exílio…
Mas paga a pena ler ainda o artigo 7º:
“Art. 7.º - Os indivíduos compreendidos neste decreto que infrinjam qualquer das suas disposições, ou deixarem de cumprir imediatamente ou no prazo que lhes for marcado, as determinações legítimas da autoridade competente, incorrerão na pena de desobediência qualificada sem prejuízo da responsabilidade que porventura lhes caiba por constituírem associações ilícitas, nos termos do art. 282 do Código Penal, ou associações de malfeitores do art. 283, do mesmo código”.
 Se isto não é a arbitrariedade, então que é ela?
 O jornal O Comércio da Póvoa de Varzim, que, a partir da proclamação da República, se assumiu como republicano, escreveu no dia 10 que os Jesuítas e as Irmãs Doroteias tinham partido “espontaneamente”. Tinham partido mas era aterrorizados. As Irmãs de Caridade receberam ordem de saída, da parte do adiministrador, nesse mesmo dia 10.
As Doroteias eram então uma congregação recente e em expansão. Aqui na Póvoa tinham um colégio novo, pago pela família da Irmã Sá, com um edifício construído para o efeito, coisa que o Liceu só veio a ter em 1951; talvez mesmo nenhuma escola primária oficial possuísse antes edifício próprio. Mas lá foram, “espontaneamente”. A isto, em português comum, chama-se mentir.

A República na Póvoa de Varzim - 1

Em Outubro de 1910, quando foi proclamada a República, trabalhavam na Póvoa alguns Padres Jesuítas, ligados a obras de piedade e a apoiar em especial a devoção ao Sagrado Coração de Jesus (as obras da basílica ainda estavam no seu começo). Mas havia também na então pequena vila as Irmãs Doroteias, que tinham um colégio feminino novo, e as Irmãs de Caridade, que trabalhavam no hospital.
Comecemos hoje por ver o que se passou com os Padres Jesuítas.
Dado carácter altamente anticlerical da República, era bem de ver que eles teriam de partir para o exílio, como já o tinham feito duas vezes na história do nosso país, a primeira com o Marquês de Pombal, a segunda com os Liberais, em 1834.
E de facto o que se começou a passar em Lisboa, ainda no dia 4 desse mês, dava um indício claro do que aí vinha.
No seu artigo saído no Boletim Cultural Póvoa de Varzim, 1996-97, vol. XXXIII, páginas 130-131, o Mons. Manuel Amorim, ao falar da expulsão dos Jesuítas, transcreve um documento que se exprime deste modo:
No dia 6 de Outubro de 1910 [quinta-feira], pela tarde, soube-se na residência [era uma casa de madeira junto às obras da Basílica em construção] da Póvoa de Varzim, que a república estava proclamada, em Lisboa.
Aquela noite já não dormimos na residência. […] Na madrugada do dia seguinte [sexta-feira, portanto], voltaram os padres ao seu posto. Disseram missa, distribuíram a sagrada eucaristia a muitos fiéis e confessaram até as 10 horas, pois era a primeira sexta-feira do mês.
Depois do jantar, o Superior chamou ao quarto os padres, repartiu com eles o dinheiro que havia, abraçou-os e despediu-os, segundo refere o P.e Alves, com estas palavras: - Vão para onde Nosso Senhor lhes inspirar...
Três partiram para Braga em carro fechado: eram os padres Alves, Falcão e Pacheco. Os dois restantes com os irmãos coadjutores saíram no dia oito, também, em carro, para Famalicão; daí o P.e Manuel Lourenço e o irmão Saraiva retiraram pelo Porto para suas casas; o P.e Arraiano recolheu-se com o irmão Martins em Ronfe até o dia 15, em que foi, com o companheiro, para La Guardia.
E acrescenta o Monsenhor:
Segundo uma testemunha presente a despedida dos padres foi emocionante mas discreta. Tudo se passou dentro do templo, entre orações e lágrimas de centenas de pessoas compungidas pela sorte dos zelosos sacerdotes aos quais entregavam esmolas para obviar ao seu futuro incerto. Eles eram muito estimados na Póvoa e as principais famílias obsequiaram-nos com provas de solidariedade dignas de registo. Também tinham alguns inimigos, é certo, quer entre uns poucos intelectuais da época, ditos liberais, quer na alta burguesia endinheirada no Brasil bazofiando anticlericalismo com audiência nas tertúlias dos cafés e das bancas do jogo. Para estes, a paragem das obras do grandioso templo [a Basílica] constituía maior perda para a Póvoa do que a ausência dos jesuítas.
O jornal "A Propaganda", que todo se embandeirou com a efígie leonina do Marquês, reproduzindo as leis persecutórias agora postas em prática pela implume república, depois de se referir à expulsão das religiosas do Colégio [Irmãs Doroteias] e do Hospital acrescenta: "... Também já retiraram os jesuítas residentes na casa anexa à igreja do Coração de Jesus, em construção”.
A fuga dos padres jesuítas não foi nem apressada nem nascida de medo infundado. O que se passava em Lisboa não anunciava nada de animador, como se pode concluir desta citação de Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal [1910-1926], vol. XI, Editorial Verbo, 1995, pág. 52:
Ainda na madrugada de 5 de Outubro foi assaltado o colégio dos jesuítas de Campolide, sendo presos o reitor, padre Alexandre de Faria Barros, outros professores religiosos e alguns empregados. [...] Mas como se não tornasse possível a sua guarda neste edifício [quartel de Artilharia I], vieram a ser transferidos para Caxias, no meio dos maiores insultos da população. [...] O Colégio do Barro, em Torres Vedras, e as residências de Vale do Rosal e de Setúbal viriam também a ser invadidos e vasculhadas, em actos que tiveram com frequência as marcas do desrespeito e do vandalismo.
De extrema gravidade foi o assassínio, ainda no dia 4 de Outubro, do padre Bernardino Barros Gomes, na casa dos lazaristas de Arroios. A multidão tratou-o com requintes de crueldade, antes de tirar a vida ao piedoso sacerdote, que era também um naturalista considerado. O padre francês Alfred Fargues, que vivia na Igreja de S. Luís, sofreu a tiro o mesmo suplício, causando as suas mortes a maior repulsa. 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

D. João V e o Convento de Mafra

D. João V, nascido em 22 de Outubro de 1689, faleceu em 31 de Julho de 1750; foi Rei de Portugal desde 1 de Janeiro de 1707: é uma figura controversa. A História chamou-lhe Magnânimo, isto é, generoso, mas muitos hoje transformam-no numa figura de farsa, burlesca.
Da sua magnanimidade aproveitou muita gente, especialmente a Igreja, que então eram quase todas as pessoas do país. Aqui nas redondezas contudo não sei bem identificar resultados significativos dessas benemerências. Talvez naquela belíssima igreja de S. Simão da Junqueira esteja dinheiro vindo deste rei. Na Matriz de Vila do Conde há seis retábulos de talha joanina, e joanina no caso refere-se a D. João V. Não que ele a pagasse necessariamente.
D. João V foi, ao menos em certo sentido, um homem de sorte. Os reis que o tinham precedido, desde D. João IV, tiveram de enfrentar as guerras da Restauração contra a Espanha, num contexto já de si de graves dificuldades financeiras. No tempo deste rei, essas guerras tinham terminado e começou a vir do Brasil ouro em quantias nunca vistas. Daí também a sua magnanimidade e o seu apoio à cultura.
Uma das nódoas que irremediavelmente macula a sua imagem foi a devassidão: ele deu-se aos amores mais inaceitáveis, a ponto de ter filhos duma freira e cortejar uma cigana.
Acusam-no de muito de perdulário, de gastador. Mas nisto já nem toda a gente é concorde. Historiadores muito conceituados discordam, dizendo, por exemplo, que D. João V precisava com urgência de melhorar a imagem exterior do país – que devia ser péssima – e que o fez com êxito. E é aqui que entra o caríssimo monumento artístico que é o Convento Mafra.
Os críticos hoje não regateiam elogios esta obra. E qualquer um de nós, se se der à contemplação daquela grandiosa fachada, das belíssimas imagens que adornam a frente da basílica, da magnífica galilé, do soberbo interior da mesma basílica, fica tomado de espanto. E há ainda a grandiosidade do conjunto, com os seus torreões, depois a belíssima biblioteca, etc.
O rei quis construir uma obra magnificente, que impusesse o país à consideração dos grandes da Europa, e conseguiu-o.
Muita gente sabe que existe um romance chamado Memorial do Convento e que esse convento é o de Mafra. Pagará a pena lê-lo para aprender a apreciar esta obra-prima do nosso barroco?
A resposta é não. No romance, achincalham-se o rei e a sua obra. Mas dum modo que atinge o rei na sua intimidade conjugal e familiar e portanto atinge a sua esposa, que era uma mulher muito culta e penso que irrepreensível, e atinge também a sua filha mais velha, D. Bárbara, que foi, além de muito culta, uma rainha de Espanha e esposa de sucesso.
Quem lê o romance nunca tem oportunidade de imaginar a fachada do convento, as imagens que a adornam, a galilé, a basílica, a biblioteca, etc. Mas tem oportunidade de ouvir as coisas mais humilhantes sobre D. João V, como se de relato verídico se tratasse.
D. João V construiu o convento em resultado duma promessa que fizera: já se passavam alguns anos desde que casara e não tinha filhos; então prometeu que, se obtivesse um herdeiro, ergueria em Mafra um convento para os frades arrábidos. E como teve não só uma menina, mas mais vários filhos a seguir, cumpriu com o que prometera.
A princípio, propôs-se construir uma pequena casa, para treze frades: era este o desejo dos arrábidos. Como mais adiante o rei ampliou o projecto, os frades, que eram de uma vivência conventual muito austera, dirigiram-se ao Cardeal fazendo-lhe ver que um amplo e majestoso convento ia contra os princípios da sua prática. Infelizmente, a queixa dos frades teve o seguimento mais errado, sendo-lhe respondido que o rei tinha direito a fazer obra tão grandiosa quanto desejasse.
Será que o Memorial do Convento regista este significativo pormenor histórico que tanto beneficia o nome dos arrábidos e que mostra um rei que ao fim e ao cabo não é logo assim tão gastador? Não. No romance, D. João V é o perdulário, a Igreja é constantemente objecto de humilhação.
Outro autor de esquerda que também dá uma imagem burlesca de D. João V é Bernardo Santareno, n’O Judeu.
Houve um filho do Magnânimo que foi arcebispo de Braga; chamou-se D. Gaspar. Manteve um estilo de vida principesco, mas foi homem moralmente aceitável.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A homossexualidade ou sodomia

A homossexualidade ou sodomia não é uma realidade nova na história da humanidade. O texto mais antigo que conheço, e que a assinala e condena, é a narrativa do Génesis sobre Sodoma e Gomorra. Mas ela existiu entre os gregos e entre os romanos antigos. E na sua pior forma, a pederastia, isto é, a homossexualidade com crianças.
Um conhecido texto romano onde ela se encontra é o Satíricon de Petrónio, que é manifestamente uma obra de marginal. Entre os gregos, há o caso da poetisa Safo.
Mas ainda assim nas obras dos grandes literatos e pensadores, quer gregos quer romanos, tanto quanto é do meu conhecimento, ela não aparece. E estou a pensar em Homero, em Ésquilo e Sófocles, em Platão e Aristóteles, e em Cícero, Virgílio e Horácio, etc., etc. É caso para dizer: uma andorinha - Safo e Petrónio - não faz a Primavera.
A meu ver, a manifestação homossexual pode ter duas origens, numa debilidade congénita ou num ambiente de permissividade.
Parece que de facto há pessoas incapazes de assumir com o outro sexo uma relação saudável e que precisam de ser ajudadas para superarem essa deficiência.
Essa atracção homossexual agrava-se naturalmente em meios unissexuais, como era o caso dos exércitos tradicionais, onde ela foi duramente reprimida.
Não há modernidade nenhuma na homossexualidade. Modernidade, aquela modernidade que é a medida mais justa do relacionamento humano de todos os tempos, é promover uma saudável relação entre os homens e as mulheres.
A narrativa de Sodoma e Gomorra parece-me muito curiosa sob alguns aspectos.
A pouca moralidade de certos textos bíblicos antigos é de molde a escandalizar-nos: as filhas de Lot embebedam o pai para poderem ter filhos dele, Abraão aceita sacrificar o seu filho único, isto é, matá-lo (embora não chegue a fazê-lo), etc. De facto, isso testemunha a inegável antiguidade dessas narrativas, que apontam para meios muito primitivos. Ora é num contexto de tão grande tolerância moral que se encontra a condenação mais radical da homossexualidade.
A determinada altura, alguns dos homens de Sodoma são castigados com a cegueira. De facto que maior cegueira pode haver que um homem olhar para outro homem e querer relacionar-se com ele como se ele fosse uma mulher? E o mesmo vale para a mulher em relação às outras mulheres.
No final do episódio os sodomitas são todos queimados por um fogo vindo do céu.
A sodomia é uma derrota. Um homem é para a mulher um complemento e a mulher é um complemento para o homem. É assim a nível biológico e a um nível mais amplamente humano. E é esta complementaridade que a homossexualidade põe em causa. Mas põe por exemplo também em causa, no limite, o futuro da espécie humana.
E no presente ela alardeada principalmente em países onde a baixa natalidade já é um sério problema.
Ao longo das páginas da Bíblia, tanto quanto me lembro, as referências à sodomia, depois do Génesis, só voltam a ocorrer de passagem nas Cartas de S. Paulo; isto é, com origem no mundo helenista. Ao chamar-se-lhe sodomia (de Sodoma), ela é repudiada nos mesmos termos da condenação dos sodomitas antigos.
Quando estudei o Fr. João de Vila do Conde, pude verificar que em Cota, a cidade imperial do Ceilão, havia graves problemas de sodomia. Creio que se tratava dum caso lamentavelmente exemplar. Por um lado, a permissividade que lá reinava ao nível do casamento era enorme e, por outro, a sodomia fora introduzida no país pelos monges budistas, o que me parece que confirma o que entendo sobre o assunto: que um ambiente permissivo e unissexual é o meio natural onde a moléstia se desenvolve e medra.
Ao longo da história europeia os assomos de sodomia foram sempre decididamente condenados. Só recentemente, com o decréscimo da influência cristã, é que se começou a dar a inversão de valores que hoje conhecemos. Curiosamente ela parece apontar para um momento de decadência moral com semelhanças relativamente àquele em que ela se tornou mais notada quer no mundo grego quer no romano. Neste sentido, parece-me um muito mau sintoma.