segunda-feira, 1 de junho de 2009

Sobre o "Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente

Há uma obra de Gil Vicente que tem por título Auto da Barca do Inferno. É uma peça de teatro de tamanho relativamente reduzido e de que quase toda a gente gosta. Naturalmente uns gostarão por uma razão, outros por outra. Hoje vou falar das razões que me levam a valorizá-la.
Este auto – auto, neste caso, quer dizer mais ou menos peça de teatro – é o auto do julgamento após a morte. Em cena estão duas barcas, uma do Diabo outra do Anjo. Quando as personagens chegam àquele cais, todas ou quase todas ambicionam ir para a barca do Anjo, e quase todas acabam na do Diabo. Isto à partida parece que não deveria provocar muito entusiasmo pela obra.
O facto é que no julgamento se faz uma apreciação muito crítica da vida terrena, com bastante ironia pelo meio. Então, os leitores e espectadores, ao verem ser enviada para o Inferno toda aquela maldade, consideram que se faz justiça; e como também se faz ironia, acham graça.
Vão para o Inferno um Fidalgo presunçoso e tirano, um Sapateiro explorador, um Onzeneiro que emprestava dinheiro a um juro exorbitante, um Frade mundano, etc., etc.
Vejamos agora o que a mim me seduz.
Quando o auto começa, o Diabo diz que está uma maré maravilhosa: “À barca, à barca / que temos gentil maré!”, grita. Quer dizer, o seu barco tem condições para levar uma grande carga. Até corre vento para o empurrar.
E a verdade é que a maré lhe vai correr de feição e a sua barca vai encher. E é enquanto ela enche que assistimos a uma crítica impiedosa à sociedade dos vivos.
Só que, em dado momento, muito perto do fim do auto, o Diabo descobre que a maré passou: a barca, carregada, pousou no chão. O Diabo ainda tenta um expediente para a fazer andar: “Alto, todos apear / Que está em seco o batel!”
Mas desta vez pode-se dizer mesmo que aquele mal não vem só; decididamente a sua boa maré passou.
Logo a seguir, apresentam-se no cais quatro Cavaleiros. Ao contrário de todas as outras personagens anteriores, que recorriam a desculpas nada convincentes ou expedientes sem préstimo para evitar a barca do Diabo, estes Cavaleiros olham a situação dum modo inteiramente diferente. Consideram-se mártires da Fé e dirigem, em canto, um convite vibrante aos espectadores para que se não dêem a uma vida desregrada, mas pelo contrário vivam a sua religião com o maior e mais decidido empenho.
O Diabo, face a esta situação nova, sente-se desnorteado: os Cavaleiros não só não lhe ligam como lhe respondem duramente; o Anjo, esse, dá o melhor acolhimento a estes passageiros.
O auto termina aqui, quando o Diabo tem a sua barca encalhada, incapaz de seguir viagem, e quando os espectadores ouvem um vibrante de quatro nobres apelo a mudar de vida. É como que um novo começo.
Mas isto, para mim, ainda não é tudo. A questão, em meu entender, é esta: Gil Vicente foi capaz de fazer uma análise audaz, realista, impiedosa à sociedade sua contemporânea, enviando-a sem apelo para a barca do Diabo; mas, colocando-se numa perspectiva de grande autenticidade evangélica, acabou mostrando o caminho alternativo a seguir. E isto através duma cena cheia de cor, canto e emoção.
O realismo da análise, que aproxima muitas vezes este auto duma farsa, está lá, mas, globalmente, a obra é uma moralidade excelente.
É curioso que o Auto da Barca do Inferno date de 1517, o ano em que Lutero começou o seu protesto. Gil Vicente também se escandalizou com as pessoas do seu tempo, também foi duro, mas soube manter-se dentro da verdade da Igreja.
Isto, algo mais, é o que eu vejo neste auto e o que acho que o faz uma obra de rara qualidade.
Há uma outra obra de Gil Vicente, o Auto da Alma, também uma moralidade, que é considerada do melhor que se produziu no género na Europa do tempo. Mas eu tenho-me encantado mais com o Auto da Barca do Inferno.
Hoje falei deste auto; na próxima vez espero falar a propósito dele.

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