terça-feira, 17 de março de 2009

“Amor de Perdição”

Vou falar dum livro de Camilo que foi grande êxito de livraria: “um êxito extra-lusitano”, segundo o seu autor. Foi escrito na prisão em meados do séc. XIX e em breve período de tempo. Estou-me a referir ao Amor de Perdição, publicado em 1862.

É uma história à Romeu e Julieta: conta que houve dois adolescentes, que viviam um de cada lado da mesma rua, em Viseu, e cujos pais se odiavam. Mas entre os jovens nasceu uma paixão avassaladora, de tal força que eles vão arriscar tudo para enfrentar os entraves que a dificultam. E acabam mal, pois a paixão condu-los à morte, uma morte na flor da idade. É uma história romântica, muito ao gosto de Camilo.
Além de Viseu, também aparecem na história Gaia e o Porto. Espaços como Vila Real e outros são muito secundários.
Quando f oi escrita, já não era então uma história contemporânea, pois passava-se ainda sob o antigo regime, no começo do século, cerca de 60 anos antes. Quer o espaço quero o tempo evocados eram arcaizantes, pelo menos não urbanos em sentido moderno. E quando o livro foi publicado, o país estava a mudar muito.
Alguns aspectos justificam o seu êxito: a luta desenvolvida por aquele par ainda tão jovem contra a prepotência dos pais, cujos rancores velhos impedem a felicidade da nova geração; uma certa recuperação moral do protagonista por obra do amor; a determinação e a fidelidade da Teresa ao seu ideal; a nobreza de espírito de Mariana; a gratidão, a determinação e a clareza de ideias de João da Cruz…
Uma vez, há uns quinze anos, eu orientava a leitura deste livro junto dos meus alunos e pus-lhes a questão, como é que o Amor de Perdição se enquadra na situação real que o autor vivia, a de estar na prisão por fugir com a jovem Ana Plácido (que abandonara o marido e se juntara ao escritor)? Creio que a solução é bem fácil e justifica alguma reflexão.
Ao conceder, na sua história, à paixão o direito de se sobrepor a todas as outras regras de conduta, ao torná-la um absoluto, o autor está a legitimar os seus actos de apaixonado.
Entendamo-nos: Simão mata, arrisca-se à forca, parte depois para o degredo e morre; Teresa enfrenta o pai e morre também: mas tudo isso se apresenta legitimado pela paixão amorosa.
É claro que não se pode negar à juventude o direito, no caso inteiramente legítimo, de seguir o seu caminho, mas há regras para todas as situações. O matrimónio, ou simplesmente o casamento, como lugar onde, com as limitações conhecidas e inevitáveis, se realizam fundos anseios dum homem e duma mulher que se amam e complementam e onde se garante da estabilidade da família, tem de ser protegido. Por isso, a romântica proposta camiliana esconde um erro básico, nunca bem declarado, mas que lhe era favorável.
Isto não é moralismo fácil, mas uma exigência nascida do mais elementar bom senso.
Como quer que seja, as histórias de Camilo são, por regra, moralmente muito mais aceitáveis que as daquele que veio a ser seu rival, o poveiro Eça de Queirós.
Camilo foi um autor de sucesso cá no Norte, espaço a que está predominantemente ligada a geografia das suas histórias. O Amor de Perdição não terá sido inteira excepção, embora o seu êxito, comprovado por exemplo pelas versões cinematográficas que já proporcionou, se deva a razões muito próprias e que estão para lá de regionalismos.

Para terminar, vou contar uma anedota de Camilo. É uma anedota que lembra o jeito de resposta pronta e mordaz que se atribui a Bocage:
Um dia o escritor ia num caminho montado num burro. Passa então por ele um fulano abastado a cavalo e pergunta-lhe: “Então, Sr. Camilo, como vai o burro?” Responde-lhe o escritor: “A cavalo, a cavalo”.

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