quarta-feira, 8 de junho de 2011

Para o Dia de Camões


Como ainda estamos próximos do Dia de Camões, vou falar deste poeta; em concreto, da sua canção X, a que começa Junto de um seco, fero e estéril monte.
Camões estava então, aí por 1560, na costa da África Oriental, junto a território da actual Somália, na entrada do estreito que liga o Oceano Índico ao Mar Vermelho. O lugar era um ponto sensível, como aliás também o é hoje. Na altura, o controlo da entrada desse estreito possibilitava aos Portugueses dominar o comércio que vinha pelo mar desde a Índia, China ou Japão. O poeta estava ali em serviço militar, mas, se menciona os horrores do lugar, não menciona a actividade em que estava envolvido. Começa assim:

Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido;
onde nem ave voa ou fera dorme,
nem rio claro corre ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído; […]

E mais à frente conclui a frase:

Aqui, no mar, que quer apressurado
entrar pela garganta deste braço,
me trouxe um tempo e teve
minha fera ventura.

O mar “quer apressurado / entrar pela garganta deste braço” certamente por o Mar Vermelho ser rodeado de terras áridas, o que provocará grande evaporação, causando um contínuo fluxo de água ida do Índico.
Depois o poeta prossegue:

Aqui, nesta remota, áspera e dura
parte do mundo, quis que a vida breve
também de si deixasse um breve espaço,
porque ficasse a vida
pelo mundo em pedaços repartida.

Num país de emigração como tradicionalmente foi o nosso, muitas vidas ficaram pelo mundo em pedaços repartidas, ao modo da de Camões. Mas devia ser uma experiência dolorosíssima, sobretudo quando uma carta só podia ter resposta meio ano ou mais depois.
Continuemos a ouvir as queixas do poeta:

Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e d'ira cheios,
não tendo tão somente por contrários
a vida, o sol ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios,
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria natureza;
também vi contra mi,
trazendo-me à memória,
algüa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.

Por comparação com os sonetos, uma canção como esta alia o tema amoroso ao do continuado infortúnio do poeta. Comum aos dois temas é a expressão sempre vigorosa, vivida que o poeta põe no que escreve. A poesia do encantamento amoroso ou as queixas contra o desconcerto do mundo têm raiz na vida do autor; por isso têm tanto sentido de coisa experimentada, não de ficção literária.
Passemos à estrofe seguinte:

Aqui estiv'eu com estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas, que caía
(e vede se seria leve o salto!)
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar, e nuns suspiros
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna;
soberba, inexorável e importuna.

Esta desesperante situação do poeta é curiosamente idêntica à do Adamastor, o gigante que ameaçava a navegação portuguesa no Cabo dito da Boa Esperança: ambos frente ao mar, rodeados de um meio agreste, ambos remoendo um amor fracassado, ambos em fúria.
A Canção X é extensa, mas não vou ler mais versos dela. A propósito destas dramáticas, doridas queixas, vou concluir com a leitura dum também vigoroso soneto de Camões; diz assim:

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das coisas que passaram
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Os dois versos finais parecem do Adamastor...
Tiremos ao menos disto que a poesia do nosso maior poeta brotou duma experiência muito dolorosa. Nós dedicamos-lhe um dia, como a um santo; convém que saibamos que ele passou muito: a sua vida ficou “pelo mundo em pedaços repartida”. Aprendê-lo também é comemorar o seu dia.

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