quarta-feira, 25 de maio de 2011

MEIRA VELOSO



Há cem anos atrás havia na Póvoa sobretudo três homens que se dedicavam a fazer versos: o P.e António Martins de Faria, Bernardino da Ponte e o P.e José Meira Veloso. O mais original dos três era o também mais novo, o P.e Meira Veloso, único de quem não existe publicado qualquer livro de poemas. O P.e Meira Veloso nasceu na Póvoa de Varzim e cá viveu muito tempo, mas chegou a emigrar para o Brasil, onde ensinou línguas e filosofia. Na Póvoa, foi professor no Colégio Povoense, capelão da Misericórdia, além de se dedicar ao jornalismo e à poesia.  Esteve na origem do escutismo local, juntamente com o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, o Prof. José Luís Ferreira e o P.e Aurélio de Faria. Foi pároco de Modivas e Aveleda, em Vila do Conde, e ainda de Paços de Ferreira. Faleceu de tuberculose com 52 anos, em Fevereiro 1934. Na altura, o Idea Nova (10/2/34) escreveu sobre ele uma notícia muito elogiosa, sugerindo primeiro que morreu como um santo e analisando depois a sua obra literária. Veja-se o que lá se disse sobre esta:

Realmente a sua poesia era de raiz parnasiana, isto é, anti-romântica, objectiva, muitas vezes narrativa. Isso permitia-lhe abordar temas bastante prosaicos, mas também muito variados. Vou ler aqui quatro dos seus poemas. O primeiro chama-se “Diletantismo”. Diletantismo é a atitude de quem quer desfrutar a vida, colhendo dela o melhor que ela oferece, mas sem nunca se comprometer com causas que obriguem a esforço. O poeta interpela um diletante.

DILETANTISMO

Tal como a Ciência, a Fé te inspira horror;
Andas cantando pois, aqui e ali,
A aparência formosa, a suave cor…
Um fraco, em suma. Tenho dó de ti.

Mas não proclames com sorrir perverso
Que a arte mais sublime de viver
É errar à superfície do Universo,
Sem destino, ao de leve, por prazer.

O diletante mais feliz que o crente?
Superior ao sábio e a toda a gente
Que procura a Verdade? Tu treslês!

Que ao certo nada saibas – grande mal!
Mas exaltar a dúvida por ideal…
É mais que cepticismo: é insensatez.

O segundo poema, intitulado “Exegese evangélica”, não é soneto e fala-nos de dois protestantes, um presbiterano e um metodista, que debatem sobre a interpretação de certo texto bíblico. A dada altura passam da interpretação teórica à aplicação prática.

EXEGESE EVANGÉLICA

Para Londres no rápido viajavam
Um presbiterano e um metodista.
E, com a Bíblia à vista,
Sobre um texto divino disputavam.

"Se na face direita alguém te bate,
Oferece-lhe a esquerda" era a lição
Que gerava a questão,
Já séria como o fumo de um combate.

O literal sentido preconiza,
Convicto, o metodista; o outro rejeita
A difícil receita;
E em vez de surdir luz, cresce a geriza.

Então, para apressar o desenlace,
Zás! o presbiterano no colega
Um bofetão pespega,
"Vamos", diz-lhe, "apresenta-me a outra face!"

Pronto! O sequaz da letra lhe obedece
E outro tapa recebe, desabrido;
Mas não se diz vencido:
O Evangelho ali está e o favorece.

"Com a mesma medida que empregares
Serás medido", cita. E tão do imo
Lhe torna o duplo mimo,
Que um canino lhe arranca e dois molares!

O terceiro poema é soneto e tem por título “Espíritos” e ridiculariza o espiritismo.

ESPÍRITOS

Duma vez, na sessão de espiritismo,
Lembrou-se um pobre pai de perguntar:
- Meu filho, que em Coimbra anda a estudar,
Ficará bem no exame? Nisto eu cismo.

Depois de um certo espírito invocar,
O médio – o padre lá desse magismo –
Caiu num furibundo convulsismo
E, espumando, ladrou: - Sim! Vai ficar!

É chumbado o rapaz. Aceso em ira,
Larga o pai contra o vate: - Biltre imundo!
Que o rebento! Burlão! Voz da mentira!

E o médio volve então, com dó profundo:
- Não fui eu, meu senhor! A mim se vira?
Bata lá nessas almas do outro mundo!

Vou ler ainda um último soneto, agora em versos de 12 sílabas; tem por título “O quarto dos… sábios”. Não é muito recomendável, mas se a gente só lesse poemas recomendáveis, muitos sairiam de circulação. Há nele algumas frases em francês que eu traduzirei.

O QUARTO DOS… SÁBIOS

Ao desdobrar da noite um mendigo estrangeiro
Foi bater ao portal duma casa de aldeia.
Recebeu gasalhado e partilhou da ceia:
Comeu alarvemente! Bebeu como um sendeiro!

Já finda a refeição, começou-se a rezar;
E então o peregrino, em ânsias, descontente,
Maldisse as tradições daquela santa gente
E deu vivos sinais de querer descansar.

- Mais non! - E ergue-se audaz - Ce n’est pas ma croyance…
- Não quer ouvir rezar? – Moi, je suis de France! -
Apontaram-lhe o céu. – Pas de dieux! – e rugia.

- Joaquim! – ordena logo o patrão a um criado,
Leva já para o quarto este endemoninhado.
- Que quarto? – O dos ateus. Além, a estrebaria.

Há aqui um jogo entre a presunção do mendigo que se julga superior e o quarto que lhe é destinado, o dos cavalos.
Nem sempre é satírica a veia do P.e Veloso, mas usa uma linguagem concisa, realista, apostando em temas de manifesta actualidade, muitas vezes com impagável graça.

A sua obra anda dispersa por jornais e revistas da província, Lisboa e Porto, e pelo Brasil. Tinha concluídos dois livros de versos, em que mostrara especial predilecção pela sátira.
Colaborou em quase todos os jornais do seu tempo nesta vila, sendo sempre muito lidos, muito apreciados e muito elogiados os seus artigos e as suas poesias. Erros, vícios, maus costumes tinham-no pela frente em ataque ardoroso, impetuoso, invencível. A sua pena encontrava-se continuamente em riste para defender a Religião, a Pátria e a Póvoa.
Era uma sentinela vigilante no campo católico, pronto a defender a Igreja das investidas dos seus adversários. E fazia-o com a fé mais ardente.
A sua linguagem era erudita, impecável, brilhante. Estilo vivo, másculo, variado. Cultivava todas as modalidades. Desejava, estimava, provocava a polémica, em que saía sempre vencedor pelos argumentos que aduzia, pela forma que adoptava.
O jornalismo poveiro sente a perda dum elemento precioso.

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