domingo, 1 de maio de 2011

Documentos antigos e toponímia


Quando a gente lê documentos tabeliónicos antigos, muitas vezes encontra lá nomes de lugares que correspondem aos actuais e outros que desapareceram. É normal que, se se pretende conhecer a forma rigorosa do nome dum lugar, um topónimo, as pessoas queiram saber como ele foi registado em tais documentos.
Mas essas formas antigas serão de inteira confiança? Representarão elas versões particularmente fiéis à etimologia, às formas de origem? Representarão mesmo o modo como então se pronunciavam?
Comecemos por ver o que se passa com um topónimo de Balasar. Há hoje na freguesia um lugar chamado Gestrins. Até ao século XVIII, pelos vistos escrevia-se principalmente Gestrim.
Que é que encontramos nos documentos antigos, nomeadamente nas Inquirições?
Primeiro, ocorrem dois lugares com este nome, Gestrim de Cima e Gestrim de Baixo. Aliás, Agistrim. Mas esta palavra tem muitas formas: Agestrim, Agistrim Agistim e até Agustim…
Isto mostra que elas não fornecem automaticamente um caminho garantido para a forma original do topónimo.
Não sei se esses registos eram feitos na base da cópia de formas já escritas – o que deveria ser prática comum – ou na base de formas colhidas no uso oral. O tabelião podia ser das proximidades, e portanto conhecer bem a palavra, mas também podia não a conhecer bem. E poderiam ainda intervir no caso copistas desleixados.
Se estas antigas formas escritas não são de inteira confiança, em que podemos confiar?
A pronúncia popular dum topónimo é muito importante, ao contrário do que se poderia pensar. Ela é transmitida de geração em geração pelas pessoas do lugar, com poucas alterações. As pessoas ouvem-na desde crianças, fixam-na e transmitem-na à geração seguinte. Já merecem muito pouca confiança certas correcções pretensamente eruditas.
Ainda em Balasar, consideremos o topónimo Guardes. Sabe-se que nos registos mais antigos a palavra se escrevia Gardes ou coisa parecida, mas nunca Guardes. Ora na origem deste topónimo pelos vistos está a palavra cardo. Logo era Cardes que se devia ter mantido, quando muito Gardes, mas nunca a forma pretensiosa de Guardes. Existem muitos casos dessas correcções pedantes.
Em Bagunte, sobre o rio Ave, há uma ponte medieval, a que se chama usualmente Ponte d’Ave. Mas alguém veio a saber que, na sua construção, interveio um homem cujo nome os documentos antigos registam como D. Zameiro. Então passou-se a chamar-lhe Ponte de D. Zameiro. Temos aqui um caso duma correcção pretensamente culta, mas errada. O homem não se chamava D. Zameiro, mas D. Sameiro. Para topónimos ali da vizinhança, escrevia-se Zividade para se ler Cividade, Alza-Perna para se ler Alça-Perna, Gazim para se ler Gacim, etc.
Agora vou dizer alguma coisa sobre o topónimo Varzim. É provável que isso já esteja exaustivamente estudado, mas eu não conheço esses estudos.
No ano de 953 escreveu-se este topónimo como EuraciniVilla Euracini. Numa coluna frente ao tribunal, bem como na fachada do edifício da câmara, isso está lá registado. Há duas ou três décadas atrás até se criaram as Galerias Euracini.
Eu penso que a segunda metade da palavra Euracini é uma latinização tabeliónica para –zim. Depois, aquele u, do Eu inicial, devia ser para ler como v. Isto já dava Evrazim. Se retirássemos aquele e – difícil de explicar ali – ficava Vrazim. Esta devia ser a forma que então se usava: Vila de Vrazim. A meu ver, nesses tempos antigos, nunca ninguém pronunciou nem imaginou mais do que isso, a não ser para o registo escrito – que não foi feito cá e que por isso pode conter incorrecções. Posteriormente escrever-se-á Varazim, mas nunca Evarazim.
Sobre o Sr. Varazim ou Vrazim, não me consta que haja qualquer outra informação, além do uso do seu nome neste topónimo, como aliás acontece com tantos antropónimos masculinos que nesses tempos deram nomes a vilas (caso do Agestrinus que está na origem de Gestrins).
No documento onde ocorre a expressão Villa Euracini, a Vila do Conde chama-se uma vez Villa Comitis outra Villa de Comite. Isto é, há duas latinizações diferentes pelo mesmo tabelião, o que também mostra a pouca confiança que essas formas nos devem merecer.
A leitura destes documentos antigos tem de ser muito crítica.

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