sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A Anunciação em S. Lucas - II

Recordemos duas frases já referidas:
O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David. Ele reinará na casa de Jacob pelos séculos e seu reino não terá fim.
É curioso notar como entra aqui o nome de David. Segundo as profecias, o Messias devia ser da descendência deste rei. Seria Maria descendente de David, que vivera mil anos antes – um espaço de tempo maior do que aquele que nos separa de Afonso Henriques? Se ela não é, como afirmar que Jesus é dessa descendência, se ele é filho de Maria e do Espírito Santo.
Entra aqui José. No mundo judaico, a paternidade biológica não era importante. Por isso José será o pai de Jesus. O pai efectivo. Vai ser assim naquele episódio da ida de Jesus ao Templo, aos onze anos. “Teu pai e eu andávamos à tua procura”, dirá Maria. É por José que Jesus é filho de David… E como David reinou sobre a Casa de Jacob, sobre o povo hebraico, também Jesus reinará, por direito familiar ou dinástico.
Um dos grandes heróis da vida de S. Lucas – pois não esqueçamos que estamos a lidar com o Evangelho de Lucas – foi S. Paulo. Ao ouvirmos as palavras do anjo que definem o estatuto de Jesus, lembrámo-nos facilmente dalguns textos das cartas do Apóstolo dos Pagãos, em que ele atribui títulos a Jesus que não vêm da tradição hebraica, como Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura.
S. João chama-Lhe a Palavra (do Pai) e o Cordeiro de Deus; o Apocalipse declara-O o Alfa e o Ómega.
Mas voltemos então ao texto de S. Lucas:
Maria perguntou ao anjo:
- Como acontecerá isso, pois não conheço homem?
Em resposta o anjo disse-lhe:
- O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; é por isso que o menino santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
Serenamente, agora Maria pede uma explicação, razoável. E ela vem esclarecedora e avançando o anúncio.
Quando o anjo diz que “o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”, lembra um pouco o que se lê num dos versículos iniciais da Bíblia: “O Espírito de Deus pairava sobre as águas”. O Espírito criador de Deus.
Há aqui como que um recomeço da obra criadora, de uns novos Céus e uma nova Terra.
S. Lucas, a concluir a narrativa da Anunciação, faz-nos ouvir estas palavras de Maria:
- Eis aqui a serva do Senhor. Aconteça comigo segundo tua palavra!
E conclui:
E o anjo afastou-se dela.
As palavras de Maria ao assumir-se como “serva do Senhor” causarão estranheza a algumas pessoas. Serva é escrava. Mas se nos lembrarmos do salmo que diz que o amor de Deus é eterno e que “é eterna a sua misericórdia”, começamos a ver que aquelas palavras têm um significado que não é o que lhe atribuiríamos à primeira. Ser serva do Senhor é entregar-se-lhe em total confiança, “porque Ele é bom!” Depois, Ele que faça o que for melhor.
O episódio de facto tem alguma continuação no mesmo evangelho de S. Lucas, mais à frente.
Quando Isabel saúda Maria, declarando-A a mais bendita das mulheres e bendito o fruto do seu ventre, Maria irrompe num cântico de gratidão e de alegria que se continha já naquela frase em que se assumia como “serva do Senhor”:
A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito rejubila em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva.
Eis que de agora em diante me chamarão feliz todas as gerações, porque o Poderoso fez por mim grandes coisas: o seu nome é santo.
Isto é belíssimo. Uma espada trespassar-Lhe-á o coração, mas Ela confiará sempre, esperará sempre. O seu Senhor nunca Lhe falhará, e todas as gerações têm obrigação de A reconhecer como bem-aventurada.
E depois de manifestar a sua gratidão, Maria tece o louvor do Deus de Israel, que é o Deus que se revela a todos os povos:
A sua misericórdia passa de geração em geração para os que o temem.
Mostrou o poder de seu braço e dispersou os que se orgulham de seus planos.
Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os de mãos vazias.
Acolheu Israel, seu servo, lembrando-se da sua misericórdia, conforme o que prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre.
Mais que um manual de bons costumes, a Bíblia é afinal um manual dos mais excelentes costumes.

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