Conta-se que em Roma havia quatro ladrões. E andando um noite a furtar, sentiram a justiça e fugiram e esconderam-se numa cova. E quando a luz veio, acharam-se numa casa de abóbada muito formosa. E acharam nela um túmulo de mármore muito formoso. E disseram entre si:
— Este túmulo foi dalgum homem nobre e rico. Abramo-lo e vejamos se achamos nele algum bem; porque noutros tempos costumavam enterrar os grandes homens com presentes e coisas de grande preço.
Então abriram o túmulo e acharam-no cheio de ouro e de prata e de pedras preciosas e de vasos e de taças de ouro muito formosas. E entre elas estava uma taça muito formosa e maior que todas outras. Quando isto acharam, disseram entre si:
— Agora estamos ricos e com sorte e seremos ricos para sempre, nós e nossos filhos; mas será bem que algum de nós vá à vila buscar comer.
E cada um se escusava, dizendo que era conhecido na cidade e temia que o enforcassem. Por fim disse um deles:
— Se me vós derdes aquela taça maior e melhor, eu vou buscar o alimento.
E os outros aceitaram, e ele foi e trouxe que comer. E indo pelo caminho levando a comida, cuidou como poria nela veneno, de modo que, comendo-a os seus companheiros, morreriam e ficaria para ele tudo o que acharam no túmulo.
E os três ladrões que ficaram, enquanto ele foi, falaram entre si e disseram:
— Aquele era nosso companheiro, mas não quis ir buscar a comida sem que lhe déssemos a taça melhor. Matemo-lo e ficará para nós toda a fortuna.
E disse um deles:
— Como o mataremos sem perigo, pois ele é mais valente do que nós?
Respondeu o outro e disse:
— Quando ele vier, digamos-lhe que entre dentro e tome a taça; e quando entrar, tiremos o pau que segura as coberturas e elas cairão sobre ele e morrerá.
E quando veio o outro fizeram assim e logo ficou morto. E eles disseram:
— Comamos e bebamos e depois dividiremos tudo entre nós.
E começarem a comer o que o outro trouxera, e morreram por causa do veneno.
Esta história é a antepassada do conto de Eça O Tesouro. Verifiquemos agora o que há de comum entre as duas e o que há de novo no conto de Eça.
Há muito de comum: a descoberta inesperada do tesouro, a questão urgente de as personagens se proverem de alimentos, o estratagema imaginado pela personagem que vai à procura da comida para ficar com todo o tesouro para si, o projecto dos que ficaram para eliminar o que foi à vila, a morte de todos e por fim a ironia da existência de um tesouro abandonado à espera de gente mais sensata que dele se queira gozar.
Uma mudança muito significativa operada por Eça foi a do espaço físico e do meio histórico: colocou-os nas Astúrias, num século indeterminado, mas que corresponderá sem grande margem para dúvidas ao XVI ou XVII. Aos gatunos de origem correspondem agora uns fidalgotes arruinados, famintos e rudes.
É um caso claro de expansão textual na base do processo da paráfrase.
Há na história de Eça alguns aspectos que quadravam bem ao feitio do autor: a ironia é sem dúvida um deles, e já estava na história de origem; outro aspecto é o facto de ser uma história que envolve muito dinheiro, o que também é usual no romancista; por fim, também a ironia feita à Igreja, quando D. Rui, um dos três fidalgos, se imagina rico e a lamentar o desaparecimento dos irmãos, que agora queria matar, mas cuja morte douraria futuramente, colocando-a num cenário de guerra, o da luta contra os turcos. Este imaginar gratuito também é muito queirosiano.