quinta-feira, 30 de maio de 2013

Livros

Vou falar de livros, mas de livros a que já aqui aludi, excepto um.
Parece-me que ninguém ou quase ninguém o diz, mas a verdade é que o Google colocou em linha, isto é, na Internet, dois livros do notabilíssimo vila-condense contemporâneo de Camões o P.e Manuel Sá. Não colocou livros do José Régio nem do Antero de Quental, mas deste doutíssimo jesuíta, que foi professor particular de S. Francisco de Borja, que colaborou com S. Inácio de Loiola, que deixou três livros que foram uma referência universal durante séculos. Se isto não é importante, não sei o que é importante.
Outro livro a que também já me referi aqui são as Distracções Métricas do Visconde de Azevedo. Para o Google o digitalizar e colocar em linha, alguma importância deve ter.
Mas é sobre um quarto livro que hoje me hoje vou alongar, as Memórias para a História de um Cisma, de Mons. José Augusto Ferreira. Também está em linha, mas em texto, não como fotografia. E quem o colocou? A Universidade de Toronto, no Canadá.
Este livro foi escrito há quase cem anos, em Vila do Conde, por esse grande historiador que foi o autor de Vila do Conde e o seu Alfoz. Viviam-se então as tiranias da República e ele evoca as tiranias liberais. As revoluções republicana e liberal bebiam duma mesma fonte, a Revolução Francesa, não admira que padecessem dos mesmos extremismos.
A digitalização das Memórias para a História de um Cisma é bastante deficiente e o livro é grande, por isso não o li todo. Mas veja-se esta citação das páginas 502-3:
Na diocese de Braga, que abrange todo o Minho (até à criação da diocese de Viana) e parte de Trás-os-Montes (até à criação da diocese de Vila Real), foi onde o scisma alimentado pelas dissenções politicas tomou proporções pavorosas.
Os actos religiosos eram celebrados furtivamente pelas casas particulares; os fieis mais escrupulosos retiravam-se dos templos na occasião em que alguns sacerdotes elevavam a Hóstia sagrada á adoração publica; aos parochos de novo colados ou encommendados era-lhes negada a obediência, que tinha de ser imposta pelo poder civil; n'uma palavra, as coisas chegaram a tal ponto que as janellas d'algumas casas, quer nas cidades, quer nas aldeias, fechavam-se quando alguns sacerdotes novamente nomeados parochos conduziam o sagrado Viatico aos enfermos; finalmente os padres, que não obedeciam ao Vigário Capitular, recusavam assistir aos actos religiosos com os demais ecclesiasticos.
Repare-se nestas frases perfeitamente aplicáveis à resistência ao cisma que por cá se verificou:
“Os actos religiosos eram celebrados furtivamente pelas casas particulares”.
“Aos parochos de novo colados ou encommendados era-lhes negada a obediência, que tinha de ser imposta pelo poder civil”.
Isto está documentado para Terroso e Rates.
Os padres, que não obedeciam ao Vigário Capitular e que se recusavam a assistir aos actos religiosos com os demais eclesiásticos são sem dúvida os falperristas, tão procurados por cá e de que talvez tenha sido preso um, em Terroso, o egresso João Inácio.
Nova citação do Mons. José Augusto Ferreira, pág. 514:
O dr. Manoel Pires de Azevedo Loureiro era, pois, um Vigário Capitular sem missão nem successão legitima, e sem eleição canónica, portanto um intruso e scismatico (desde 1834).
(…)
No principio do anno de 1836 o dr. Loureiro, que era deputado, partiu para Lisboa, a fim de occupar o seu logar na Camara, e por isso delegou o governo da diocese em seu irmão Dr. António Pires d' Azevedo Loureiro, que desempenhava o cargo de Provisor.
Qualquer destes dois Loureiros, o Manuel e o António, fez por cá estragos. O António, em 1839, nomeou o pároco de Terroso para arcipreste. Mas fê-lo na condição de ele prestar juramento perante o administrador do concelho. Ora o administrador, na qualidade de regedor de Rates, fora, no anterior, condenado por crime de cisma, isto é, por resistir ao cisma. Quando lhe aparece o padre cismático a pedir que lhe fosse deferido o juramento, ele recusou na base de dois argumentos: a lei não o obrigava a deferir-lho e ele, pároco de Terroso, não tinha qualidades para o cargo de arcipreste. O administrador geral do Porto deu razão ao administrador da Póvoa.

Enfim, memórias de estragos e de sofrimentos.

sábado, 11 de maio de 2013

O Museu de Rates


Recentemente visitei o museu de Rates: foi para mim uma bela surpresa. Não me informei muito sobre as peças, relativamente poucas, que estão em exposição, o que talvez ainda tente fazer um dia. Mas o que não há dúvida é que nos mergulham num mundo muito antigo, não raro mais antigo que a própria igreja românica.
Não sei o que os entendidos dizem sobre uma rude estátua de bispo que lá se expõe, mas ela poderia ter originado a lenda de S. Pedro de Rates. Coisa muito antiga, primitiva e expressiva! Ninguém duvida de que se trata dum prelado. É claro que a lenda nem é muito antiga, pois pode vir só do século XVI, quando aquela estátua já tinha 500 anos!
Se a gente se espanta a olhar para a estátua do bispo, outro tanto acontece frente à estátua dum rei: espada ao alto, coroa na cabeça, uma veste em túnica a chegar aos pés. Como surgiu ali, que sentido lá faz?
Houve ali perto uma pousa real…
Na igreja é abundante a iconografia, o que era comum no tempo. Quem fez umas esculturas pode ter feito as outras.
Nas traseiras da igreja há aquela colecção de arcas funerárias. Devem remeter também para os primeiros tempos do mosteiro. Trabalho igualmente primitivo.
Há-as também em Rio Mau, mas menos.
No museu encanta-nos ainda uma estela romana, escultura lá para mil anos mais antiga que as estátuas do bispo e do rei. É uma peça alta, bastante trabalhada, que uma utilização posterior não terá mutilado muito. É sobretudo um eloquente testemunho do invasor romano e da sua requintada civilização.
Também muito antiga é a custódia paroquial local – não exposta no museu -, de quando já o mosteiro fora extinto. Mas é também um testemunho da religiosidade da comunidade ratense. Ali ao lado, em Balasar, há uma cruz processional do mesmo século.
No mesmo dia em que visitei o museu de Rates, fui de novo ver o intrigante marco que assinala o ponto de encontro das freguesias de Rates, Balasar e Arcos, a Pedra Negra de outros tempos. Chamaram-lhe assim em 1258, nas inquirições, mas devia ser designação milenar. Em 1542, quando o pároco balasarense mandou renovar o tombo, era a Pedra do Couto.
O facto de ter a face principal voltada para o lado de onde nasce o sol pode apenas ter a ver com a sua função original. Realmente, deve tratar-se de um menir e vir portanto do tempo das mamoas que existiram nos limites de Balasar com Macieira e com S. Marinha de Vicente, isto é, de cerca de 2000 antes de Cristo. A parte superior tem algum carácter antropomórfico.
A palavra menir tem em português como sinónimo a palavra pedrafita ou perafita. Ora, a nascente de Balasar, houve S. Veríssimo de Pedrafita.
Há razões para crer que a Pedra Negra teve um papel histórico notável, já em tempo dos romanos e depois ao tempo dos visigodos. Não era por acaso que o Arcediagado de Vermoim terminava em Guardinhas... era com certeza por causa da Pedra Negra. Isto está documentado cerca do ano 1090.
À partida, parece que o adjectivo negra, de Pedra Negra, pode ter origem em qualquer aspecto de religiosidade primitiva ou rito mágico. Não é de excluir porém que aponte para uma classificação geológica rudimentar: houve nas proximidades mais pedras negras e ainda hoje se conhecem seixos brancos. Estes são grandes pedregulhos brancos, dizem-nos que de quartzo. Conhecemos um de várias toneladas e outros menores.
Em 1258, ao delimitar o reguengo de Agistrim (Gestrins), depois de falar da Pedra Negra, faz-se menção também da Pedra Curveira. Esta ficava onde se encontram Balasar, Macieira de Rates e Negreiros. O mais provável é que estas pedras pré-existissem à criação das freguesias. Numa data que não deve estar longe de 1225, houve uma contenda entre os nobres que possuíam terras em Macieira e os homens do reguengo de Agistrim. Quando se reuniam para tentar entendimento, faziam-no junto à Pedra Curveira. A Pedra Negra, a Pedra Curveira, como certamente a Pedra Aguçadoura, donde vem o nome à freguesia que fica a norte de Aver-o-Mar, tinham naqueles tempos algum sortilégio, alguma magia que hoje se desconhece.

quarta-feira, 27 de março de 2013

O aniversário do nascimento da Beata Alexandrina


Como estamos em dia do aniversário do nascimento da Beata Alexandrina, vou hoje falar dela e a propósito dela.
Verdadeiramente quem me recordou esta data foi o último número do boletim da Alexandrina Society, que recebi há dias. Como é seu costume, a associação promove 24 horas ininterruptas de adoração eucarística entre os dias 29 e 30. Penso que o convite para essa adoração foi a razão principal para fazerem sair o boletim. A iniciativa é a mais consentânea com o espírito da vida e obra da patrona da associação.
No boletim vinha uma notícia que interessa muito aos membros da Alexandrina Society, embora para nós o seu interesse seja menor: a viúva do fundador, que era do país de Gales e fora para a Irlanda quando casou, vai regressar à terra natal, deixando assim o secretariado. Fica a substituí-la uma tal Úrsula Coppinger, que se mostra muito determinada em prosseguir com a divulgação da Alexandrina.
Embora a publicação não apresente endereço de correio electrónico, o que é pena, apresenta ao cimo da página inicial o endereço dum site, o Balasar.net. Este site foi criado por um filho do fundador, o Patrick Reynolds.
Recebi recentemente o último livro da D. Eugénia Signorile também sobre a Beata Alexandrina. Talvez seja o vigésimo, o que faz dela e do seu falecido marido um especialíssimo caso de devoção e divulgação da Beata de Balasar. O livro tem pelo menos duas visíveis virtudes: é pequeno e o seu visual é cuidado. De base biográfica, procura evidenciar o carácter de alma vítima da Alexandrina.
Logo no princípio, atribui-se à biografada uma característica que a singulariza entre os santos que a Igreja beatificou ou canonizou: o seu nascimento foi pré-anunciado pela Santa Cruz, aparecida em Balasar em 1832.
E agora é da Santa Cruz que vou falar um pouco.
Primeiro que tudo, convém saber-se que sua aparição está garantida por documento fidedigno e que ocorreu duas semanas após o desembarque do Mindelo, que levaria à vitória dos liberais. Esta vitória teve consequências devastadoras para a Igreja. Implicou muito mais do que a extinção das ordens religiosas: D. Pedro IV, o irmão de D. Miguel, era maçónico e, ainda antes de vir para Portugal, ameaçou o Papa de lançar o país no cisma. E com a vitória, os liberais cumpriram a ameaça do seu rei entretanto falecido.
Eu tenho andado a tentar vislumbrar o que se passou por cá após Évora-Monte e parece-me que correspondeu ao eclodir duma violenta tempestade.
Colocado à frente da Diocese de Braga um agente dos liberais, o vigário capitular Loureiro, procedeu-se ao saneamento dos párocos opositores ao cisma. Não importavam muito as razões a invocar, sobretudo se se tratasse de paróquias com bastante rendimento.
E há um aspecto original nesta situação, os autores do cisma, que eram os liberais fanáticos, acusavam de cismáticos os sacerdotes ou até populares que recusassem o seu cisma. E nesta guerra de confusão de sentido da palavra, entravam agentes do governo e certamente câmaras.
No concelho da Póvoa, alargado a partir de 1837 para fronteiras próximas das actuais, houve duas freguesias que ousaram oferecer mais resistência ao cisma, Terroso e Rates. Pelo menos é o que se pode deduzir de alguns documentos de 1838.
Os terrosenses parecem ter levado a sua oposição até passar por cima das posições do pároco, que colaborava com o governo: terão chegado a baptizar crianças em casa. Em Rates, o pároco foi expulso logo no princípio de 1838, mas os ratenses não se deram por vencidos e continuaram a resistir. Veio, certamente do Porto, uma força militar, que começou por pacificar Terroso e que depois foi para Rates. Mas os moradores da freguesia, talvez também melindrados por lhes terem extinguido o concelho, não pararam. E foram ameaçados com a vinda duma força ainda maior. Não foi com certeza por acaso que, ao tempo da Maria da Fonte, eles se recusaram a entregar as armas de fogo…
As pessoas, que acorriam em tão grande número às festas da Santa Cruz, devem ter percebido que ela trazia uma mensagem de esperança no meio da tempestade que tudo queria derrubar.

quinta-feira, 14 de março de 2013

De novo a Maria da Fonte


Quando há alguns meses atrás aqui falei da Maria da Fonte na Póvoa de Varzim, não imaginava que havia um livro que historiava essa revolta em Vila do Conde. De facto há. Tem como título Maria da Fonte. A Sedição Popular em Terra de Marinheiros Poetas e Rendilheiras e é da autoria de Adelina Piloto. É certo que o título não menciona a Póvoa, mas, quando se folheia a obra, verifica-se que a parte final dele aborda os acontecimentos da vila vizinha.
O documento principal que guarda memória das movimentações revolucionárias de 1846 na Póvoa é a acta que já comentei, de 29 de Maio de 1846. Para a Vila, há um documento que compete em importância com a acta e é um relatório do administrador do concelho para o Governo Civil, de 24 de Abril. Estes documentos foram escritos com objectivos opostos.
O de Vila do Conde, que é anterior, pretende justificar o fracasso da tentativa revolucionária, enaltecer a actuação das autoridades e ilibar a participação popular do concelho. O da Póvoa, que data de quando a revolta já adquirira dimensão nacional e o governo fora substituído, pretende vincar o carácter geral, espontâneo e patriótico da movimentação dos “povos” do concelho.
Contradizendo-se e tendo objectivos opostos, eles devem-se complementar.
Passo a ler parte do documento vila-condense, dirigido ao governador civil:
Pela manhã do dia 23 (de Abril) se achavam os sublevados na Póvoa em força de 200 a 300 homens, uns armados de espingardas e outros de forcados e fouces, sendo eles pela maior parte das freguesias de Cristelo e para o nascente pertencente ao concelho de Barcelos, os quais me informam que na descida obrigam a gente que encontravam a acompanhá-los, pena de incendiar-lhes as casas. O comandante era um das Necessidades, que fora porta-bandeira das milícias, cujo nome ignoro, e até agora não sei de outros chefes.
Consta-me que na Póvoa fizeram auto na Câmara, mas pelo administrador daquele concelho melhor V. Ex.cia saberá o que lá houve.
Pelas três horas da tarde do mesmo dia de ontem, 23 do corrente, entraram os sublevados nesta vila dirigindo-se à casa da câmara e administração do concelho, aonde penetraram dando vivas a Sua Majestade a Rainha, à Religião, contribuições abaixo e morram os Cabrões.
Conta-se a seguir a escolha da nova câmara e vários outros actos dos revoltosos que já não nos interessam muito.
A Póvoa está mais próxima de Barcelos e de Braga, onde primeiro se fez sentir a revolta e por isso é bem possível que, como diz o administrador vila-condense, tivesse havido aí participação de barcelenses. Aliás, quase todas as freguesias poveiras tinham pertencido a Barcelos até poucos anos antes. A Vila, sobretudo a sul, está mais próxima do Porto, onde os efeitos da revolução se sentiram mais tarde e por isso a participação popular deve ter sido menor.
Não sendo de admitir como pura invenção o que o administrador escreve sobre as pessoas vindas de freguesias Barcelos, deve haver é exagero ao atribuir-lhe quase toda a causa dos acontecimentos, como deve haver exagero ao reduzir ao mínimo a participação das gentes da sua Vila.
O António José dos Santos, que, como disse da primeira vez, foi eleito administrador, já tinha servido aquele cargo em 1840 e 1841 e fora, ainda antes, administrador substituto.
Quando o administrador poveiro quis recolher as armas das populações, S. Pedro de Rates, ao menos num primeiro momento, resistiu à determinação da autoridade. De notar que se trata duma freguesia confinante com Barcelos.
Um notável poveiro que aderiu à revolta foi Francisco Gomes de Amorim.
O que acabo de dizer não dispensa a leitura do livro de Adelina Piloto, mas já dá uma visão mais completa do que foi esse fenómeno revolucionário de 1846, um caso raro pelo seu carácter espontâneo e popular. Quase todas as revoluções começam de cima e são depois vendidas ao povo.
Os historiadores insistem em que o móbil da revolta era a oposição popular a medidas dos Cabrais que no fim de contas eram progressistas. As coisas não devem ser bem assim: é preciso não esquecer que o poder era de inspiração maçónica e cometera verdadeiras atrocidades contra o catolicismo. Os vivas à Religião remetiam sem dúvida para essas humilhações da década anterior.

domingo, 3 de março de 2013

“O Mandarim” ou dinheiro, muito dinheiro…


Hoje vou falar de um pequeno livro de Eça de Queirós, O Mandarim. Eça insiste na ideia de que se trata duma obra fantasiosa. Mas nas obras de fantasia pode-se vazar a expressão dos anseios mais fundos do autor sem os constrangimentos que o confronto com a realidade impõe. Parece-me que é o caso.
O Mandarim é, sob muitos aspectos, um parente próximo d’A Relíquia. A mesma fantasia descabelada percorre um e noutro.
Conta o protagonista, Teodoro, um bacharel funcionário do Estado contemporâneo de Eça, a viver em Lisboa, que um dia estava a ler um livro e que encontrou lá umas frases que diziam que, se tocasse uma campainha – campainha que estranhamente estava ali à mão – morreria na China um mandarim mais rico que os reis da história ou da fábula e que ele, leitor, se tornaria dono de toda a sua imensa riqueza. Teodoro hesita por momentos, mas então o Diabo, que se encontra perto e em pose de cidadão comum e bem pensante, mostra-lhe que seria erro imperdoável recusar a oportunidade.
Tocada a campainha, de imediato nada acontece, mas, passadas semanas, começa a chegar de Londres e de Paris a fortuna do mandarim morto.
Se isto não é puro delírio, então não sei como se lhe há-de chamar.
Teodoro, que é novo, começa a realizar as suas ambições: instala-se principescamente, aceita relacionar-se com os poderosos do tempo e dá-se a uma vida de luxo e deboche.
Acontecem depois várias peripécias, nomeadamente uma atribulada viagem à China. O leitor não se dá conta do passar do tempo e por isso, quando chega ao final, descobre com alguma surpresa, que Teodoro se sente já velho e faz testamento. A quem deixa os sobrantes milhões? Como eles não o fizeram feliz, deixa-os ao Diabo.
Teodoro encerra assim a sua história:
E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: ‘Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!’
Parece uma confissão de arrependido, edificante, mas não é, pois ele continua:
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!
Nesta apóstrofe ao leitor, o protagonista evoca certo poema satânico de Beaudelaire. De facto, o livro é satânico desde as páginas iniciais até a este fim.
Talvez esta convicção de Eça, mas atribuída a Teodoro, sobre o poder do dinheiro seja mais um delírio seu e muitas pessoas recusassem tornar-se ricas com a morte alheia.
A mensagem deste livro está, menos descarada, em várias outras obras do autor. Por exemplo, no conto O Tesouro, Rui promove a morte dum irmão e mata o outro. Já pensa então numa vida de ostentação e deboche, à maneira do herói d’O Mandarim, e no modo como há-de justificar o desaparecimento dos irmãos assassinados no meio da mata: espalharia que tinham acabado na guerra contra o Turco e mandaria celebrar por eles abundantes sufrágios… Quando descobre que também fora traído, não tem nenhum rebate de consciência.
E que dizer do Raposão, protagonista d’A Relíquia? E que dizer do lugar do dinheiro n’A Cidade e as Serras? E n’Os Maias?
Eça escreveu uma vez que “a Arte é tudo. Tudo o resto é nada”. Devia estar sob um ataque de lirismo: então o dinheiro não é que é mesmo tudo – para ele?

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Divertimento poético em Fernando Pessoa


Em Fernando Pessoa há vários poemas divertidos. Vou falar de alguns, mas outros ficarão de fora. Começo por um poema célebre, intitulado Liberdade.

LIBERDADE

Ai que prazer
não cumprir um dever!
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal,
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa chegou a ter uma dieta de ler um livro por dia e era atormentado pelo que ele chama a dor de pensar, um constante e penoso congeminar. Este poema exalta a libertação desses tormentos, dos dele e também dos nossos.

Ai que prazer
não cumprir um dever!
Ter um livro para ler
e não o fazer!

Eu acho graça ao poema também por ele denunciar, indirectamente, a falta de fundamento da célebre afirmação de Eça de Queirós de que “a arte é tudo”. Pessoa afirma, e é verdade  que há muitas coisas grandes, das quais umas são arte, outras não: a poesia, a bondade, as danças, as crianças, flores, música, o luar e o sol e Jesus Cristo.
Não é grande só a arte nem lá para a beira.
Este poeta tinha uma relação muito própria com a infância e com as crianças (presentes no poema anterior). Ele escreveu dois Poemas para Lili, que creio que era uma sua sobrinha. O primeiro deles conta uma viagem de comboio em que tudo é desencontrado, sem razão, mas divertido.

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada -
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela -
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente,
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não -
No comboio descendente
De Palmela a Portimão

Fernando Pessoa tem uma colecção de “quadras ao gosto popular”. Há uma a que acho particular graça:
"Mau, Maria!" — tu disseste
Quando a trança te caía.
Qual "Mau, Maria", Maria!
"Má Maria" "Má Maria!"
Veja-se também esta:

Dona rosa, dona Rosa,
De que roseira é que vem,
Que não tem senão espinhos
Para quem só lhe quer bem?

E fico por aqui.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Divertimento poético em Camões


Hoje vamos ter versos, mas versos que eu considero um divertimento, uma brincadeira poética. Grandes poetas como Camões ou Fernando Pessoa, ao lado de textos de pensamento profundo ou até dramático, escreveram poemas divertidos. Pretendo hoje proporcionar uma amostra desses divertimentos poéticos na obra do épico.
Começo por esta quadra, que tem um prévio esclarecimento sem o qual pouco sentido faz.
A D. António, Senhor de Cascais, que tendo-lhe prometido seis galinhas recheadas por uma copla (uns versos) que lhe fizera, lhe mandou por princípio da paga meia galinha recheada:

Cinco galinhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais.

O divertimento aqui está sobretudo no trocadilho duma meia galinha que vinha cheia.
Também a propósito de uma promessa de galinha, feita pelo duque de Aveiro, que redundou na oferta de uma ração de carneiro, tem Camões estes versos:

Eu já vi a taberneiro
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi por vida minha
Dar carneiro por galinha
Senão ao duque de Aveiro.

Há uma brincadeira dele particularmente engenhosa. São duas oitavas decassilábicas em louvor de certa moça. A primeira diz assim:

Sois uma dama de grão merecer,
das feias do mundo andais apartada,
de toda a má fama andais alongada,
sois cabo profundo de bem parecer.
A vossa figura, bem claro mostrais,
não é pera ver em vós fealdade;
em vosso poder não há i maldade,
não há formosura que não precedais.

É um grande elogio cortesão. Mas se formos à estrofe escrita e lhe traçarmos uma espécie de linha vertical pelo centro abaixo, as duas partes que resultam têm nexo, mas dizem o contrário do que tinha sido dito antes. Fica assim a metade inicial:

Sois uma dama
das feias do mundo,
de toda a má fama
sois cabo profundo,
a vossa figura
não é pera ver,
em vosso poder
não há formosura.

É o mundo do divertimento poético palaciano, da subtileza cortês.
N’Os Lusíadas há mesmo o que podíamos considerar uma anedota.
Mas se nos casos anteriores, os poemas eram de pouca valia poética, é bem diferente num texto como o da “menina dos olhos verdes”.
Começa assim:

Menina dos olhos verdes,
Por que me não vedes?

O divertimento assenta fundamentalmente na diversidade de significados e sentidos da palavra verdes. Pode ser simplesmente uma cor: sinal verde, folhas verdes; mas pode ser também uma forma verbal, como na frase Seria instrutivo verdes o filme. Mas verde, diz-se, é cor da esperança. O poeta explora todas estas possibilidades:


Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Vossa condição
Não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.

Isenção a molhos
Que eles dizem terdes,
Não são de olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de geolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vedes.

Havia de ser,
Por que possa vê-los,
Que uns olhos tão belos
Não se hão de esconder.
Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Porque me não vedes.

Verdes não o são
No que alcanço deles;
Verdes são aqueles
Que esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Por que me não vedes?

Convenhamos que é um bocado enredado, mas é poético e devia fazer sucesso no meio palaciano. Há muito mais disto na obra de Camões. Mais divertimento.
Isto é do tempo do estilo manuelino, que também é enredado e gracioso.