Quando há alguns meses atrás aqui falei
da Maria da Fonte na Póvoa de Varzim, não imaginava que havia um livro que
historiava essa revolta em Vila do Conde. De facto há. Tem como título Maria da Fonte. A Sedição Popular em Terra
de Marinheiros Poetas e Rendilheiras
e é da autoria de Adelina Piloto. É certo que o título não menciona a Póvoa,
mas, quando se folheia a obra, verifica-se que a parte final dele aborda os
acontecimentos da vila vizinha.
O documento principal que guarda memória
das movimentações revolucionárias de 1846 na Póvoa é a acta que já comentei, de
29 de Maio de 1846. Para a Vila, há um documento que compete em importância com
a acta e é um relatório do administrador do concelho para o Governo Civil, de
24 de Abril. Estes documentos foram escritos com objectivos opostos.
O de Vila do Conde, que é anterior,
pretende justificar o fracasso da tentativa revolucionária, enaltecer a
actuação das autoridades e ilibar a participação popular do concelho. O da
Póvoa, que data de quando a revolta já adquirira dimensão nacional e o governo
fora substituído, pretende vincar o carácter geral, espontâneo e patriótico da
movimentação dos “povos” do concelho.
Contradizendo-se e tendo objectivos
opostos, eles devem-se complementar.
Passo a ler parte do documento
vila-condense, dirigido ao governador civil:
Pela manhã do
dia 23 (de Abril) se achavam os
sublevados na Póvoa em força de 200 a 300 homens, uns armados de espingardas e
outros de forcados e fouces, sendo eles pela maior parte das freguesias de Cristelo
e para o nascente pertencente ao concelho de Barcelos, os quais me informam que
na descida obrigam a gente que encontravam a acompanhá-los, pena de
incendiar-lhes as casas. O comandante era um das Necessidades, que fora
porta-bandeira das milícias, cujo nome ignoro, e até agora não sei de outros
chefes.
Consta-me que na
Póvoa fizeram auto na Câmara, mas pelo administrador daquele concelho melhor V.
Ex.cia saberá o que lá houve.
Pelas três horas
da tarde do mesmo dia de ontem, 23 do corrente, entraram os sublevados nesta
vila dirigindo-se à casa da câmara e administração do concelho, aonde
penetraram dando vivas a Sua Majestade a Rainha, à Religião, contribuições
abaixo e morram os Cabrões.
Conta-se a seguir a escolha da nova
câmara e vários outros actos dos revoltosos que já não nos interessam muito.
A Póvoa está mais próxima de Barcelos e
de Braga, onde primeiro se fez sentir a revolta e por isso é bem possível que,
como diz o administrador vila-condense, tivesse havido aí participação de
barcelenses. Aliás, quase todas as freguesias poveiras tinham pertencido a
Barcelos até poucos anos antes. A Vila, sobretudo a sul, está mais próxima do
Porto, onde os efeitos da revolução se sentiram mais tarde e por isso a
participação popular deve ter sido menor.
Não sendo de admitir como pura invenção
o que o administrador escreve sobre as pessoas vindas de freguesias Barcelos,
deve haver é exagero ao atribuir-lhe quase toda a causa dos acontecimentos,
como deve haver exagero ao reduzir ao mínimo a participação das gentes da sua Vila.
O António José dos Santos, que, como
disse da primeira vez, foi eleito administrador, já tinha servido aquele cargo em
1840 e 1841 e fora, ainda antes, administrador substituto.
Quando o administrador poveiro quis
recolher as armas das populações, S. Pedro de Rates, ao menos num primeiro
momento, resistiu à determinação da autoridade. De notar que se trata duma
freguesia confinante com Barcelos.
Um notável poveiro que aderiu à revolta
foi Francisco Gomes de Amorim.
O que acabo de dizer não dispensa a
leitura do livro de Adelina Piloto, mas já dá uma visão mais completa do que
foi esse fenómeno revolucionário de 1846, um caso raro pelo seu carácter
espontâneo e popular. Quase todas as revoluções começam de cima e são depois
vendidas ao povo.
Os historiadores
insistem em que o móbil da revolta era a oposição popular a medidas dos Cabrais
que no fim de contas eram progressistas. As coisas não devem ser bem assim: é preciso
não esquecer que o poder era de inspiração maçónica e cometera verdadeiras
atrocidades contra o catolicismo. Os vivas à Religião remetiam sem dúvida para
essas humilhações da década anterior.
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