Hoje vou falar de um pequeno livro de
Eça de Queirós, O Mandarim. Eça
insiste na ideia de que se trata duma obra fantasiosa. Mas nas obras de
fantasia pode-se vazar a expressão dos anseios mais fundos do autor sem os
constrangimentos que o confronto com a realidade impõe. Parece-me que é o caso.
O
Mandarim
é, sob muitos aspectos, um parente próximo d’A Relíquia. A mesma fantasia descabelada percorre um e noutro.
Conta o protagonista, Teodoro, um
bacharel funcionário do Estado contemporâneo de Eça, a viver em Lisboa, que um
dia estava a ler um livro e que encontrou lá umas frases que diziam que, se tocasse
uma campainha – campainha que estranhamente estava ali à mão – morreria na
China um mandarim mais rico que os reis da história ou da fábula e que ele,
leitor, se tornaria dono de toda a sua imensa riqueza. Teodoro hesita por
momentos, mas então o Diabo, que se encontra perto e em pose de cidadão comum e
bem pensante, mostra-lhe que seria erro imperdoável recusar a oportunidade.
Tocada a campainha, de imediato nada
acontece, mas, passadas semanas, começa a chegar de Londres e de Paris a
fortuna do mandarim morto.
Se isto não é puro delírio, então não
sei como se lhe há-de chamar.
Teodoro, que é novo, começa a realizar
as suas ambições: instala-se principescamente, aceita relacionar-se com os
poderosos do tempo e dá-se a uma vida de luxo e deboche.
Acontecem depois várias peripécias,
nomeadamente uma atribulada viagem à China. O leitor não se dá conta do passar
do tempo e por isso, quando chega ao final, descobre com alguma surpresa, que
Teodoro se sente já velho e faz testamento. A quem deixa os sobrantes milhões?
Como eles não o fizeram feliz, deixa-os ao Diabo.
Teodoro encerra assim a sua história:
E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: ‘Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!’
Parece uma confissão de arrependido,
edificante, mas não é, pois ele continua:
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!
Nesta apóstrofe ao leitor, o protagonista
evoca certo poema satânico de Beaudelaire. De facto, o livro é satânico desde
as páginas iniciais até a este fim.
Talvez esta convicção de Eça, mas
atribuída a Teodoro, sobre o poder do dinheiro seja mais um delírio seu e
muitas pessoas recusassem tornar-se ricas com a morte alheia.
A mensagem deste livro está, menos
descarada, em várias outras obras do autor. Por exemplo, no conto O Tesouro, Rui promove a morte dum irmão
e mata o outro. Já pensa então numa vida de ostentação e deboche, à maneira do herói
d’O Mandarim, e no modo como há-de
justificar o desaparecimento dos irmãos assassinados no meio da mata:
espalharia que tinham acabado na guerra contra o Turco e mandaria celebrar por
eles abundantes sufrágios… Quando descobre que também fora traído, não tem
nenhum rebate de consciência.
E que dizer do Raposão, protagonista d’A Relíquia? E que dizer do lugar do
dinheiro n’A Cidade e as Serras? E n’Os Maias?
Eça escreveu uma vez que “a Arte é tudo.
Tudo o resto é nada”. Devia estar sob um ataque de lirismo: então o dinheiro
não é que é mesmo tudo – para ele?
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