quarta-feira, 29 de julho de 2009

Póvoa de Varzim e arredores na Idade Média III

Como da vez passada falei da presença do Rei e de nobres aqui nas redondezas, na Idade Média, hoje vou tecer algumas considerações relativas à Igreja.
Na história fala-se pouco das paróquias, aquelas unidades mais pequenas da ordenação religiosa do território. Um testemunho muito antigo sobre elas vem num documento de cerca de 1080 e que se chama o Censual do Bispo D. Pedro. Tirando os casos bastante conhecidas de paróquias criadas no século XX, as outras com poucas excepções (como o caso da da Póvoa de Varzim) já existiam nessa altura e têm cerca de mil anos de existência ininterrupta. O normal portanto é que sejam anteriores à fundação da nacionalidade: quando D. Afonso Henriques nasceu, elas já existiam. Entre as que entretanto foram extintas, contam-se a de Formariz, em Vila do Conde, a de Santagões, em Bagunte, a de Santo Isidro, no Outeiro Maior, e a de Gresufes, em Balasar.
Nas Inquirições de Afonso III, vem uma curiosa informação sobre o pároco de Nabais: diz-se aí que ele era clérigo da rainha D. Brites, que foi segunda esposa de D. Afonso III e que era filha bastarda de Afonso X de Castela e foi mãe de D. Dinis.
Houve então por cá alguns mosteiros. O de Rates, erigido pelo Conde D. Henrique e extinto no séc. XVI; o de Rio Mau, que deve ter tido uma existência fugaz e foi depois integrado no de S. Simão da Junqueira; o de S. Simão da Junqueira vinha do séc. XI e foi extinto no séc. XVIII.
Estas casas religiosas originalmente seriam pequenas e humildes. Só com o andar dos tempos é que adquiriram, em casos como a do Mosteiro da Junqueira, a dimensão que os seus edifícios ainda testemunham. Curioso é que todos tenham nascido à margem duma estrada antiga, caminho de Santiago.
Merecem atenção a iconografia de Rio Mau nos tímpanos da porta principal e também na lateral. Igualmente merece atenção Agnus Dei do tímpano da porta principal de Rates. Há um capitel da antiga igreja de Amorim que ilustra uma cena dum poema medieval, a Chanson de Roland.
O Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde vem do séc. XIV e praticamente era de fundação régia; daí a sua magnificência. Por sinal, na origem o seu estatuto não o identificava bem como mosteiro, mas mais como asilo de raparigas nobres e pobres. A sua rosácea, vista do interior, é um grande espectáculo, nada que se pareça com o que se vê de fora.
Sobre o topónimo Varzim, queria só dizer que no célebre Escritura de Vila do Conde, do ano 953, a palavra que usualmente se lê Euracini poder-se-ia ler Evracini, que seria a latinização de Evrazim, forma já muito próxima da pronúncia popular do topónimo, Brazim. Posteriormente, vai-se repetir a forma Varazim, que pode nem ter base popular.
Às vezes, as pessoas perguntam onde é que se vão buscar estas informações dum tempo tão distante. Ponhamos as coisas de um modo prático: se se quisesse organizar uma colectânea de documentos relativos à Póvoa e seu concelho referentes aos séculos XI, XII e XIII, ainda se conseguiria um volume de muitas páginas. Haja em vista as Inquirições, por exemplo, o Censual do Bispo D. Pedro e os documentos avulsos que é possível reunir, vindos por exemplo das colectâneas do Mosteiro da Junqueira ou das que reuniu o P.e Avelino de Jesus Costa, etc. Depois, o estudo comparativo dos documentos permite ir muito mais longe
Hoje também vou concluir com uma cantiga medieval, ou pelo menos parte dela, pois só vou ler metade dela. É uma reflexão curiosa sobre a mudança. Diz o poeta anónimo:

Quen viu o mundo qual o eu ja vi
e viu e as gentes que eron entón
e viu aquestas que ora son,
Deus! quand' i cuida, que pode cuidar?
Ca me sin' eu per min, quando cuid' i!
Por que me non vou algur esterrar,
se poderia melhor mund' achar?

Mundo teemos fals' e sen sabor,
mundo sen Deus e en que ben non á,
e mundo tal que non corregerá,
ante o vejo sempr' empeorar.
Quand' est' eu cat' e vej' end'o melhor,
por que me non vou algur esterrar,
se poderia melhor mund' achar?

U foi mesur’ ou grãadez? U jaz
verdad’, u é quen á amigo leal?
Que fui d'amor ou trobar? Por que sal
a gente trist' e sol non quer cantar?
Quand’ est' eu cat' e quanto mal s'i faz,
por que me non vou algur esterrar,
se poderia melhor mund' achar?

Viv' eu en tal mund' e faz-m' i viver
ua dona, que quero mui gran ben,
e muit' á ja que m'en seu poder ten,
ben dê-lo temp' u soían amar.
Ôimais de min pode quen quer saber
por que me non vou algur esterrar,
se poderia melhor mund' achar?

Mais, en tal mundo, por que vai morar
ome de prez, que s'en pod' alongar?

Trovador desconhecido

Quase todas as gerações pensam que é só no tempo delas que as coisas mais andam para trás, atingem o ponto mais baixo. O trovador, que afinal não seria propriamente pessoa de bem, para exprimir o seu escândalo frente à degradação do presente, usa uma linguagem variada, de jeito hiperbólico, cheia de interrogações retóricas, reforçada pelo refrão.

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