Hoje vamos ter versos, mas versos que eu considero um
divertimento, uma brincadeira poética. Grandes poetas como Camões ou Fernando
Pessoa, ao lado de textos de pensamento profundo ou até dramático, escreveram
poemas divertidos. Pretendo hoje proporcionar uma amostra desses divertimentos
poéticos na obra do épico.
Começo por esta quadra, que tem um prévio esclarecimento
sem o qual pouco sentido faz.
A D. António, Senhor de Cascais, que
tendo-lhe prometido seis galinhas recheadas por uma copla (uns versos) que lhe fizera, lhe mandou por princípio da paga meia
galinha recheada:
Cinco galinhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais.
O divertimento aqui está sobretudo no trocadilho duma
meia galinha que vinha cheia.
Também a propósito de uma promessa de galinha, feita pelo duque de Aveiro,
que redundou na oferta de uma ração
de carneiro, tem Camões estes versos:
Eu já vi a taberneiro
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi por vida minha
Dar carneiro por galinha
Senão ao duque de Aveiro.
Há uma brincadeira dele particularmente
engenhosa. São duas oitavas decassilábicas em louvor de certa moça. A primeira
diz assim:
Sois uma dama de
grão merecer,
das feias do
mundo andais apartada,
de toda a má
fama andais alongada,
sois cabo
profundo de bem parecer.
A vossa figura,
bem claro mostrais,
não é pera ver
em vós fealdade;
em vosso poder
não há i maldade,
não há formosura
que não precedais.
É um grande elogio cortesão. Mas se formos
à estrofe escrita e lhe traçarmos uma espécie de linha vertical pelo centro
abaixo, as duas partes que resultam têm nexo, mas dizem o contrário do que
tinha sido dito antes. Fica assim a metade inicial:
Sois uma dama
das feias do
mundo,
de toda a má
fama
sois cabo
profundo,
a vossa figura
não é pera ver,
em vosso poder
não há
formosura.
É o mundo do divertimento poético palaciano, da
subtileza cortês.
N’Os Lusíadas
há mesmo o que podíamos considerar uma anedota.
Mas se nos casos anteriores, os poemas eram de pouca valia poética, é
bem diferente num texto como o da “menina dos olhos verdes”.
Começa assim:
Menina dos olhos verdes,
Por que me não vedes?
O divertimento assenta fundamentalmente na diversidade de significados
e sentidos da palavra verdes. Pode ser simplesmente uma cor: sinal
verde, folhas verdes; mas pode ser também uma forma verbal, como na frase Seria
instrutivo verdes o filme. Mas verde, diz-se, é cor da esperança. O poeta
explora todas estas possibilidades:
Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Vossa condição
Não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.
Isenção a molhos
Que eles dizem terdes,
Não são de olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de geolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vedes.
Havia de ser,
Por que possa vê-los,
Que uns olhos tão belos
Não se hão de esconder.
Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Porque me não vedes.
Verdes não o são
No que alcanço deles;
Verdes são aqueles
Que esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Por que me não vedes?
Convenhamos que é um bocado enredado,
mas é poético e devia fazer sucesso no meio palaciano. Há muito mais disto na
obra de Camões. Mais divertimento.
Isto é do tempo do estilo manuelino, que
também é enredado e gracioso.
1 comentário:
Muito interessante os versos desses dois poetas, que eu não sabia poesias tão divertidas e inteligentes.
Abraços!
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