Há alguns meses fiz umas leituras sobre
a Igreja de S. Pedro de Rates que me impressionaram. Na base delas vou hoje
falar do tímpano do portal principal desta igreja.
Às vezes parece que há a ideia de que na
Idade Média as pessoas eram todas cristãos praticantes e exemplares. Mas o
nosso rei D. Afonso Henriques teve vários filhos fora do casamento, D. Sancho I
a mesma coisa, D. Afonso III foi muito pior, D. Dinis foi também muito fraco
marido. Se abrirmos o chamado Cancioneiro da Biblioteca Nacional, que é um
livro muito grande e com poesia dos séculos XII, XIII e XIV, por cada cantiga
decente que lá se encontra deve haver meia dúzia delas obscenas, ou mais. Nas
Inquirições há comuns informações de roubos e às vezes de assassínios.
De facto, chegou-nos muita notícia de
maldades que então se cometiam.
Ora o tímpano da Igreja de S. Pedro de
Rates, que datará de cerca de 1220, parece um programa de ataque a este estado
de coisas.
Ao centro, vê-se Cristo em Majestade ou
o Pantocrátor, Cristo vencedor, ladeado pelos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, o
primeiro papa e o primeiro grande propagador do Cristianismo. Sob os pés de
Cristo e dos apóstolos jazem dois homens, que os entendidos identificam como
Ario e Judas. Ario foi um heresiarca e a sua heresia vigorou algum tempo na
Península, sob os suevos. Judas representa o judaísmo, que pode ter tido
relevância no período visigótico.
Ora, segundo os mesmos especialistas da
história da arte, a imagem de Cristo em majestade apresentá-lo-á de acordo com estas
palavras de um salmo: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita
enquanto eu ponho os teus inimigos sob o escabelo dos teus pés”. Deus Pai
promete a Cristo colocar-lhe os inimigos sob os pés, isto é, derrotá-los.
A mensagem é clara, a vitória de Cristo
no passado sobre Ario e Judas garante a sua vitória no presente e no futuro.
Em capitéis do mesmo portal,
representa-se o Tetramorfo, isto é, os símbolos dos Evangelistas, o que indica
que essa vitória passa pelo Evangelho, pela sua divulgação.
Não está aqui, ao menos directamente,
uma mensagem guerreira, de luta pelas armas contra os mouros, embora possa
incluí-la, mas é antes uma mensagem para dentro das comunidades cristãs, para
irem às fontes genuínas.
No tímpano da chamada porta sul,
representa-se o Agnus Dei, o “Cordeiro
de Deus que tira os pecados do mundo”, do Evangelho de S. João, e o mesmo
Cordeiro do Apocalipse, em cujo sangue os redimidos lavaram as suas vestes. E
também aí terá estado representado o Tetramorfo.
Este segundo tímpano continua a mensagem
do da porta principal, a do regresso ao Evangelho.
Sabemos que, apesar desta espécie de
manifesto de luta, ali em Rates se desenvolveu a lenda de S. Pedro de Rates, a
que andou associada a de S. Félix. E a lenda de S. Pedro de Rates teve um
apêndice em Balasar. Em Bagunte, parece ser sobre uma lenda se criou a ermida
da Senhora das Neves, em S. Clara de Vila do Conde houve a Lenda da Berengária
e outras.
É mais difícil estar com os Evangelhos,
de um tempo e uma cultura distantes, do que com uma piedosa lenda do nosso
lugar.
Esta mensagem, em imagens tão toscas, trazida
pelos monges franceses de Cluny, é surpreendentemente actual, convidando os
cristãos a seguir o caminho da verdade evangélica, na certeza de que a vitória
os espera.
Muito curioso é tudo isto.
Ouçam-se estas palavras de um crítico de
arte sobre o tímpano que serviu de ponto de partida para esta reflexão:
Talvez o mais interessante dos tímpanos
portugueses seja o de S. Pedro de Rates, mosteiro de refundação beneditina do
séc. XII que teve uma importância primordial na difusão artística da Ordem no
Norte de Portugal, bem como um papel decisivo na “normalização” teológica e
litúrgica empreendida pelos Beneditinos cluniacenses no novo reino peninsular,
facto que ajuda a explicar o tema do tímpano do seu portal principal.
Jorge Rodrigues,
História da Arte Portuguesa, direcção
de Paulo Pereira, vol. I, páginas 268-269.
rior
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