sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Divertimento poético em Fernando Pessoa


Em Fernando Pessoa há vários poemas divertidos. Vou falar de alguns, mas outros ficarão de fora. Começo por um poema célebre, intitulado Liberdade.

LIBERDADE

Ai que prazer
não cumprir um dever!
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal,
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa chegou a ter uma dieta de ler um livro por dia e era atormentado pelo que ele chama a dor de pensar, um constante e penoso congeminar. Este poema exalta a libertação desses tormentos, dos dele e também dos nossos.

Ai que prazer
não cumprir um dever!
Ter um livro para ler
e não o fazer!

Eu acho graça ao poema também por ele denunciar, indirectamente, a falta de fundamento da célebre afirmação de Eça de Queirós de que “a arte é tudo”. Pessoa afirma, e é verdade  que há muitas coisas grandes, das quais umas são arte, outras não: a poesia, a bondade, as danças, as crianças, flores, música, o luar e o sol e Jesus Cristo.
Não é grande só a arte nem lá para a beira.
Este poeta tinha uma relação muito própria com a infância e com as crianças (presentes no poema anterior). Ele escreveu dois Poemas para Lili, que creio que era uma sua sobrinha. O primeiro deles conta uma viagem de comboio em que tudo é desencontrado, sem razão, mas divertido.

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada -
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela -
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente,
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não -
No comboio descendente
De Palmela a Portimão

Fernando Pessoa tem uma colecção de “quadras ao gosto popular”. Há uma a que acho particular graça:
"Mau, Maria!" — tu disseste
Quando a trança te caía.
Qual "Mau, Maria", Maria!
"Má Maria" "Má Maria!"
Veja-se também esta:

Dona rosa, dona Rosa,
De que roseira é que vem,
Que não tem senão espinhos
Para quem só lhe quer bem?

E fico por aqui.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Divertimento poético em Camões


Hoje vamos ter versos, mas versos que eu considero um divertimento, uma brincadeira poética. Grandes poetas como Camões ou Fernando Pessoa, ao lado de textos de pensamento profundo ou até dramático, escreveram poemas divertidos. Pretendo hoje proporcionar uma amostra desses divertimentos poéticos na obra do épico.
Começo por esta quadra, que tem um prévio esclarecimento sem o qual pouco sentido faz.
A D. António, Senhor de Cascais, que tendo-lhe prometido seis galinhas recheadas por uma copla (uns versos) que lhe fizera, lhe mandou por princípio da paga meia galinha recheada:

Cinco galinhas e meia
Deve o Senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais.

O divertimento aqui está sobretudo no trocadilho duma meia galinha que vinha cheia.
Também a propósito de uma promessa de galinha, feita pelo duque de Aveiro, que redundou na oferta de uma ração de carneiro, tem Camões estes versos:

Eu já vi a taberneiro
Vender vaca por carneiro.
Mas não vi por vida minha
Dar carneiro por galinha
Senão ao duque de Aveiro.

Há uma brincadeira dele particularmente engenhosa. São duas oitavas decassilábicas em louvor de certa moça. A primeira diz assim:

Sois uma dama de grão merecer,
das feias do mundo andais apartada,
de toda a má fama andais alongada,
sois cabo profundo de bem parecer.
A vossa figura, bem claro mostrais,
não é pera ver em vós fealdade;
em vosso poder não há i maldade,
não há formosura que não precedais.

É um grande elogio cortesão. Mas se formos à estrofe escrita e lhe traçarmos uma espécie de linha vertical pelo centro abaixo, as duas partes que resultam têm nexo, mas dizem o contrário do que tinha sido dito antes. Fica assim a metade inicial:

Sois uma dama
das feias do mundo,
de toda a má fama
sois cabo profundo,
a vossa figura
não é pera ver,
em vosso poder
não há formosura.

É o mundo do divertimento poético palaciano, da subtileza cortês.
N’Os Lusíadas há mesmo o que podíamos considerar uma anedota.
Mas se nos casos anteriores, os poemas eram de pouca valia poética, é bem diferente num texto como o da “menina dos olhos verdes”.
Começa assim:

Menina dos olhos verdes,
Por que me não vedes?

O divertimento assenta fundamentalmente na diversidade de significados e sentidos da palavra verdes. Pode ser simplesmente uma cor: sinal verde, folhas verdes; mas pode ser também uma forma verbal, como na frase Seria instrutivo verdes o filme. Mas verde, diz-se, é cor da esperança. O poeta explora todas estas possibilidades:


Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Vossa condição
Não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.

Isenção a molhos
Que eles dizem terdes,
Não são de olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de geolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vedes.

Havia de ser,
Por que possa vê-los,
Que uns olhos tão belos
Não se hão de esconder.
Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Porque me não vedes.

Verdes não o são
No que alcanço deles;
Verdes são aqueles
Que esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Por que me não vedes?

Convenhamos que é um bocado enredado, mas é poético e devia fazer sucesso no meio palaciano. Há muito mais disto na obra de Camões. Mais divertimento.
Isto é do tempo do estilo manuelino, que também é enredado e gracioso.