Eu não conheço nada que tenha sido
publicado sobre a revolta da Maria da Fonte aqui no concelho da Póvoa de Varzim,
mas é sobre o eco que essa revolta por cá teve que vou falar.
Vulgarmente a Maria da Fonte é vista
como um facto menor da nossa história, contudo ela deve ter revelado um
desencontro profundo entre o sentir das camadas populares e o poder de
inspiração maçónica que dominava o Estado desde 1834.
Em concreto, diz-se que a revolta
começou na Póvoa de Lanhoso, em Março de 1846, quando um grupo de mulheres
desafiou a proibição de sepultar os cadáveres no interior da igreja. A mentora
do acto de insubmissão teria sido Maria da Fonte, e daí o nome dado à revolta,
que alastrou rapidamente pelo país.
O que se passou na pequena vila da
Póvoa, só o conheço pelas actas camarárias. A primeira delas data de 29 de Maio
de 1846, mas reporta-se a factos bastante anteriores. Mas ela deve seleccionar
muito bem o que regista; podemos por isso imaginar várias coisas que lá não
constam.
No dia 23 de Abril entraram na vila “os
povos de todas as freguesias que compõem o mesmo concelho, as quais foram
interrompidas no exercício das suas funções pela chegada de alguma força militar
no dia vinte e quatro do sobredito mês de Abril, vinda da cidade do Porto”.
Para que “os povos de todas as
freguesias que compõem o mesmo concelho” se reunissem, houve necessariamente
acaloradas movimentações, que a acta não menciona. O desacato deve ter sido
grande: a reunião começou no dia 23 e só terminou em 24, pela ameaça resultante
da aproximação duma força militar. Embora a acta o não diga explicitamente, a
câmara e demais autoridades foram demitidas, pois foram eleitas outras para
ocuparem o lugar, e não é impossível que tenha havido algumas violências (1).
Cerca de um mês depois, em 19 de Maio,
tendo a força militar retirado, os povos do concelho reuniram-se de novo e
aprovaram as autoridades já eleitas. Esta insistência na insubordinação implica
determinação e liderança: alguém aceitava correr sérios riscos.
No dia 29 de Maio, ratificou-se a nomeação
das Autoridades Populares. A acta é assinada por 343 homens do concelho, homens
que persistiam em defender os seus pontos de vista: homens mobilizados. Na
altura, concelho compunha-se destas freguesias: Nossa Senhora da Conceição
(Póvoa de Varzim), Argivai, Navais, Estela, Terroso, Laundos, Rates, Rio Mau,
Balasar, Parada, Outeiro Maior e Santagões. Ficavam de fora Amorim e Beiriz,
então pertencentes a Vila do Conde.
Os factos ocorridos na Póvoa tiveram
naturalmente em conta a evolução da situação política no país.
Há um homem que deve ter tido um papel
relevante nesta movimentação poveira: chamava-se António José dos Santos e casara
para Balasar, em Vila Nova. Terá sido simplesmente um agitador.
Ele teve a maioria dos votos quando se
procedeu, a quente, à eleição das novas autoridades, cabendo-lhe
consequentemente o cargo de maior responsabilidade, o de administrador do
concelho. Mas não chegou a tomar posse: os influentes poveiros hão-de tê-lo
convencido a desistir, pois ele não teria adequada preparação para o cargo e
morava longe da sede do concelho. Pelos vistos, arranjaram-lhe um emprego
remunerado, o de Chefe da Delegação da Alfândega.
António José dos Santos tinha então um
pouco mais que 50 anos e não era de modo nenhum analfabeto. Até escreveria
razoavelmente, se isso se pode deduzir duma assinatura que lhe conhecemos.
À Maria da Fonte sucedeu-se outra
revolta, a Patuleia. A Rainha D. Maria II teve de ser drástica a lidar com a
situação e no ano seguinte tudo regressava à normalidade. Nessa altura, a
câmara da Póvoa foi dissolvida superiormente. Caso curioso, António José dos
Santos foi proposto para vereador na nova edilidade, mas não aceitou. Aparentemente,
há algo contraditório da parte do poder: para quê chamar um homem que se tinha
batido por uma autoridade de raiz popular? Mas ele recusou, pois nunca aparece
nas actas seguintes. Como quer que fosse, era-lhe reconhecida uma popularidade
especial.
António José dos Santos, que era natural
de Gueral e devia ser abastado, continuou a ser um homem considerado em Balasar
e entre as edilidades poveiras. Foi avô do António Joaquim Leitão que um dia
comprou a Quinta de D. Benta.
Como já disse, não conheço nada impresso
sobre a Revolta da Maria da Fonte na Póvoa. Para Vila do Conde, há pelo menos
algumas páginas das Duas Fiandeiras,
de Gomes de Amorim.
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(1) Também em Vila do Conde, no mesmo dia 23 de Abril, segundo a acta camarária de 28, “os povos amotinados tinham evadido (sic) esta Vila, queimando vários papéis da secretaria da administração deste concelho e suposto confundiram alguns da secretaria desta Câmara, contudo felizmente não faltaram nenhuns, tendo aqueles povos retirado em consequência da entrada do Batalhão Nº 16, comandado pelo coronel Taborda”. Deve ter sido este o batalhão que foi à Povoa. A Câmara foi dissolvida em Junho e substituída por uma comissão nomeada pelo Governo Civil.
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(1) Também em Vila do Conde, no mesmo dia 23 de Abril, segundo a acta camarária de 28, “os povos amotinados tinham evadido (sic) esta Vila, queimando vários papéis da secretaria da administração deste concelho e suposto confundiram alguns da secretaria desta Câmara, contudo felizmente não faltaram nenhuns, tendo aqueles povos retirado em consequência da entrada do Batalhão Nº 16, comandado pelo coronel Taborda”. Deve ter sido este o batalhão que foi à Povoa. A Câmara foi dissolvida em Junho e substituída por uma comissão nomeada pelo Governo Civil.
Da consulta que fizemos a
documentação contemporânea, não nos pareceu que se tivesse verificado a tomada
do castelo por populares, romanceada por Gomes de Amorim n’As Duas Fiandeiras.
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