quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Maria da Fonte na Póvoa de Varzim

Eu não conheço nada que tenha sido publicado sobre a revolta da Maria da Fonte aqui no concelho da Póvoa de Varzim, mas é sobre o eco que essa revolta por cá teve que vou falar.
Vulgarmente a Maria da Fonte é vista como um facto menor da nossa história, contudo ela deve ter revelado um desencontro profundo entre o sentir das camadas populares e o poder de inspiração maçónica que dominava o Estado desde 1834.
Em concreto, diz-se que a revolta começou na Póvoa de Lanhoso, em Março de 1846, quando um grupo de mulheres desafiou a proibição de sepultar os cadáveres no interior da igreja. A mentora do acto de insubmissão teria sido Maria da Fonte, e daí o nome dado à revolta, que alastrou rapidamente pelo país.
O que se passou na pequena vila da Póvoa, só o conheço pelas actas camarárias. A primeira delas data de 29 de Maio de 1846, mas reporta-se a factos bastante anteriores. Mas ela deve seleccionar muito bem o que regista; podemos por isso imaginar várias coisas que lá não constam.
No dia 23 de Abril entraram na vila “os povos de todas as freguesias que compõem o mesmo concelho, as quais foram interrompidas no exercício das suas funções pela chegada de alguma força militar no dia vinte e quatro do sobredito mês de Abril, vinda da cidade do Porto”.
Para que “os povos de todas as freguesias que compõem o mesmo concelho” se reunissem, houve necessariamente acaloradas movimentações, que a acta não menciona. O desacato deve ter sido grande: a reunião começou no dia 23 e só terminou em 24, pela ameaça resultante da aproximação duma força militar. Embora a acta o não diga explicitamente, a câmara e demais autoridades foram demitidas, pois foram eleitas outras para ocuparem o lugar, e não é impossível que tenha havido algumas violências (1).
Cerca de um mês depois, em 19 de Maio, tendo a força militar retirado, os povos do concelho reuniram-se de novo e aprovaram as autoridades já eleitas. Esta insistência na insubordinação implica determinação e liderança: alguém aceitava correr sérios riscos.
No dia 29 de Maio, ratificou-se a nomeação das Autoridades Populares. A acta é assinada por 343 homens do concelho, homens que persistiam em defender os seus pontos de vista: homens mobilizados. Na altura, concelho compunha-se destas freguesias: Nossa Senhora da Conceição (Póvoa de Varzim), Argivai, Navais, Estela, Terroso, Laundos, Rates, Rio Mau, Balasar, Parada, Outeiro Maior e Santagões. Ficavam de fora Amorim e Beiriz, então pertencentes a Vila do Conde.
Os factos ocorridos na Póvoa tiveram naturalmente em conta a evolução da situação política no país.
Há um homem que deve ter tido um papel relevante nesta movimentação poveira: chamava-se António José dos Santos e casara para Balasar, em Vila Nova. Terá sido simplesmente um agitador.
Ele teve a maioria dos votos quando se procedeu, a quente, à eleição das novas autoridades, cabendo-lhe consequentemente o cargo de maior responsabilidade, o de administrador do concelho. Mas não chegou a tomar posse: os influentes poveiros hão-de tê-lo convencido a desistir, pois ele não teria adequada preparação para o cargo e morava longe da sede do concelho. Pelos vistos, arranjaram-lhe um emprego remunerado, o de Chefe da Delegação da Alfândega.
António José dos Santos tinha então um pouco mais que 50 anos e não era de modo nenhum analfabeto. Até escreveria razoavelmente, se isso se pode deduzir duma assinatura que lhe conhecemos.
À Maria da Fonte sucedeu-se outra revolta, a Patuleia. A Rainha D. Maria II teve de ser drástica a lidar com a situação e no ano seguinte tudo regressava à normalidade. Nessa altura, a câmara da Póvoa foi dissolvida superiormente. Caso curioso, António José dos Santos foi proposto para vereador na nova edilidade, mas não aceitou. Aparentemente, há algo contraditório da parte do poder: para quê chamar um homem que se tinha batido por uma autoridade de raiz popular? Mas ele recusou, pois nunca aparece nas actas seguintes. Como quer que fosse, era-lhe reconhecida uma popularidade especial.
António José dos Santos, que era natural de Gueral e devia ser abastado, continuou a ser um homem considerado em Balasar e entre as edilidades poveiras. Foi avô do António Joaquim Leitão que um dia comprou a Quinta de D. Benta.
Como já disse, não conheço nada impresso sobre a Revolta da Maria da Fonte na Póvoa. Para Vila do Conde, há pelo menos algumas páginas das Duas Fiandeiras, de Gomes de Amorim.
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(1) Também em Vila do Conde, no mesmo dia 23 de Abril, segundo a acta camarária de 28, “os povos amotinados tinham evadido (sic) esta Vila, queimando vários papéis da secretaria da administração  deste concelho e suposto confundiram alguns da secretaria desta Câmara, contudo felizmente não faltaram nenhuns, tendo aqueles povos retirado em consequência da entrada do Batalhão Nº 16, comandado pelo coronel Taborda”. Deve ter sido este o batalhão que foi à Povoa. A Câmara foi dissolvida em Junho e substituída por uma comissão nomeada pelo Governo Civil.
Da consulta que fizemos a documentação contemporânea, não nos pareceu que se tivesse verificado a tomada do castelo por populares, romanceada por Gomes de Amorim n’As Duas Fiandeiras.
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O campanilo da Estela


Há tempos falei das torres do nosso arciprestado e hoje volto ao tema. De facto, tomei conhecimento de alguma informação que considero que merece ser acrescentada ao que tinha dito.
Em relação à igreja velha de Rio Mau, vi uma fotografia de há 100 anos, de quando a restauraram, que mostra como que era o pobre torreão sineiro dessa grande freguesia: coisa pobre e inestética. Ainda por cima colocada na frente da fachada principal A fotografia vem em Vila do Conde e o seu Alfoz, do Mons. J. A. Ferreira. A actual torre, moderna mas de imitação antiga, data dessa altura.
Como é sabido, há um quadro do século XVII que mostra Rates e a paisagem envolvente. O que não mostra é nenhuma torre na igreja. Mas houve uma, mais tarde, um pouco atarracada e que lhe ficava a poente, junto à cabeceira. Foi justamente demolida.
Mas não foram estas duas breves observações que me levaram a voltar a falar de torres, foi o livrinho de Gomes dos Santos Da Estela com Saudades. Em concreto, foi o que o autor lá escreveu sobre o demolido “campanilo” da terra.
Começo por esta palavra. Ela quer chamar a atenção para o facto de aquela pequena torre ser, como muitas de Itália, destacada da igreja, autónoma. Ao modo do torreão de Laundos.
O campanário da Estela serve de ilustração da capa do mencionado livro; naturalmente o autor não o esquece na sua exposição e descreve-o com pormenor. Vou agora tomar a liberdade de citar o que lá se lê sobre “o campanilo da Estela”. 
A Estela tinha um campanilo. Tinha; já não tem. Não era um campanário com a riqueza plástica e a exuberância dos campanilos de Giotto que por via de regra são ex-libris das cidades italianas onde foram construídos.Todavia era um torreão com sobriedade e imponência que dava boa conta dos vizinhos da Estela. Torreão quadrado, com cunhais de granito talhado a pico fino, encimados por pináculos de idêntica factura. Com frontões triangulares, encimando os triângulos equiláteros uma cruz também talhada a granito; a cruz sem figura e muito sóbria que também simbolizava de forma eloquente a alma dum povo e a época da construção. Nas faces norte, nascente e sul, com janelas em ogiva, lá estavam os três sinos, o grande, o do meio e o pequeno. A poente subiam as escadas por onde os rapazes iam tocar o sino, fazer “bamboar” o sino grande, tarefa que exigia muita força e muita perícia; e tinha os seus riscos.Os sinos são a marca duma terra; aquele campanilo era o verdadeiro ex-libris da Estela. Como se pode concluir por esta lenda que então se contava. Em Laundos os sinos avisavam “tem lêndea”… “tem lêndea”; os de Nabais: “matai-a”… “matai-a”; e os da Estela concluem: “c’um pau”, “c’um pau”. Como se vê, à semelhança de outras terras e da Candelária do Brasil, os sinos da Estela têm a sua lenda.
Como as da terra natal de Torga que tanto o impressionaram. Aqui, a versão onomatopaica da lenda conta assim: “tem lêndeas”… “tem lêndeas”… “se tem tira-as”… “se tem tira-as”.Os sinos repicam nos baptizados e festas Tocam de forma diferente consoante o acto litúrgico para que convidam.
Foi uma pena que a Estela tivesse demolido este seu monumento.
A vida rural era antigamente muito repetitiva e as pessoas viajavam pouco ou nada, a ponto de haver, diz-se, quem nascesse, vivesse e morresse sem sair alguma vez da sua terra. Mas a sua imaginação de analfabetos era como a nossa, embora tivesse pouco de que se alimentar. Estas lengalengas dos sinos fazem-me lembrar algumas adaptações vernáculas populares do latim litúrgico. Na ladainha chamava-se a Nossa Senhora Janua caeli (Porta do Céu), e a adaptação vernácula traduzia isto para “já não há céu”; Virgo clemens (Virgem clemente) dava “vira o creme”. Etc. E vem isto a propósito do desaparecido campanilo da Estela.