quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sobre a Igreja Românica de S. Pedro de Rates


Há alguns meses fiz umas leituras sobre a Igreja de S. Pedro de Rates que me impressionaram. Na base delas vou hoje falar do tímpano do portal principal desta igreja.
Às vezes parece que há a ideia de que na Idade Média as pessoas eram todas cristãos praticantes e exemplares. Mas o nosso rei D. Afonso Henriques teve vários filhos fora do casamento, D. Sancho I a mesma coisa, D. Afonso III foi muito pior, D. Dinis foi também muito fraco marido. Se abrirmos o chamado Cancioneiro da Biblioteca Nacional, que é um livro muito grande e com poesia dos séculos XII, XIII e XIV, por cada cantiga decente que lá se encontra deve haver meia dúzia delas obscenas, ou mais. Nas Inquirições há comuns informações de roubos e às vezes de assassínios.
De facto, chegou-nos muita notícia de maldades que então se cometiam.
Ora o tímpano da Igreja de S. Pedro de Rates, que datará de cerca de 1220, parece um programa de ataque a este estado de coisas.
Ao centro, vê-se Cristo em Majestade ou o Pantocrátor, Cristo vencedor, ladeado pelos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, o primeiro papa e o primeiro grande propagador do Cristianismo. Sob os pés de Cristo e dos apóstolos jazem dois homens, que os entendidos identificam como Ario e Judas. Ario foi um heresiarca e a sua heresia vigorou algum tempo na Península, sob os suevos. Judas representa o judaísmo, que pode ter tido relevância no período visigótico.
Ora, segundo os mesmos especialistas da história da arte, a imagem de Cristo em majestade apresentá-lo-á de acordo com estas palavras de um salmo: “Disse o Senhor ao meu Senhor: Senta-te à minha direita enquanto eu ponho os teus inimigos sob o escabelo dos teus pés”. Deus Pai promete a Cristo colocar-lhe os inimigos sob os pés, isto é, derrotá-los.
A mensagem é clara, a vitória de Cristo no passado sobre Ario e Judas garante a sua vitória no presente e no futuro.
Em capitéis do mesmo portal, representa-se o Tetramorfo, isto é, os símbolos dos Evangelistas, o que indica que essa vitória passa pelo Evangelho, pela sua divulgação.
Não está aqui, ao menos directamente, uma mensagem guerreira, de luta pelas armas contra os mouros, embora possa incluí-la, mas é antes uma mensagem para dentro das comunidades cristãs, para irem às fontes genuínas.
No tímpano da chamada porta sul, representa-se o Agnus Dei, o “Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”, do Evangelho de S. João, e o mesmo Cordeiro do Apocalipse, em cujo sangue os redimidos lavaram as suas vestes. E também aí terá estado representado o Tetramorfo.
Este segundo tímpano continua a mensagem do da porta principal, a do regresso ao Evangelho.
Sabemos que, apesar desta espécie de manifesto de luta, ali em Rates se desenvolveu a lenda de S. Pedro de Rates, a que andou associada a de S. Félix. E a lenda de S. Pedro de Rates teve um apêndice em Balasar. Em Bagunte, parece ser sobre uma lenda se criou a ermida da Senhora das Neves, em S. Clara de Vila do Conde houve a Lenda da Berengária e outras.
É mais difícil estar com os Evangelhos, de um tempo e uma cultura distantes, do que com uma piedosa lenda do nosso lugar.
Esta mensagem, em imagens tão toscas, trazida pelos monges franceses de Cluny, é surpreendentemente actual, convidando os cristãos a seguir o caminho da verdade evangélica, na certeza de que a vitória os espera.
Muito curioso é tudo isto.
Ouçam-se estas palavras de um crítico de arte sobre o tímpano que serviu de ponto de partida para esta reflexão:
Talvez o mais interessante dos tímpanos portugueses seja o de S. Pedro de Rates, mosteiro de refundação beneditina do séc. XII que teve uma importância primordial na difusão artística da Ordem no Norte de Portugal, bem como um papel decisivo na “normalização” teológica e litúrgica empreendida pelos Beneditinos cluniacenses no novo reino peninsular, facto que ajuda a explicar o tema do tímpano do seu portal principal.
Jorge Rodrigues, História da Arte Portuguesa, direcção de Paulo Pereira, vol. I, páginas 268-269.
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