Quando, há já mais de dois anos, eu aqui falava da poesia de tema religioso, não conhecia um livro, preparado por José Régio e por um colaborador, de nome Alberto Serpa, dedicado a essa poesia. Sabia que ele existia, mas não o conhecia. Recentemente procurei-o no Centro de Estudos Regianos, em Vila do Conde, e encontrei-o. Tem por título Na Mão de Deus. Antologia da Poesia Religiosa Portuguesa, e foi publicado em 1958. Vou ler dele um pequeno conjunto de quadras soltas seleccionadas e um soneto. Cada uma das quadras contém uma pequena lição a meu ver muito oportuna.
Tu chamas amor-perfeito
A coisas que a terra cria;
Amor-perfeito há só um,
Filho da Virgem Maria.
Quem quiser amar a Deus
Não diga que não tem tempo:
Pode andar no seu trabalho
Com Jesus no pensamento.
No ventre da Virgem Mãe
Encarnou divina graça;
Entrou e saiu por ela
Como o sol pela vidraça.
Se este mundo for ao fundo,
Cheio das ondas do mar,
Inda fica o Outro Mundo
Que a gente ganha a rezar.
Sou cigana do Egipto
O meu ofício é furtar.
Hei-de furtar Deus Menino
Prà minha alma se salvar.
Já pedi a morte a Deus,
Que disse que não ma dava,
Que pedisse a salvação
Pois que a morte certa estava.
Tu dizes que não há Deus,
Afirmas que nunca O viste.
Inda não foste ao Brasil
E bem sabes que ele existe.
Amar e saber amar,
Amar e saber a quem:
Amar a Nossa Senhora,
Não amar a mais ninguém.
Peço a Deus, mas não me atrevo,
Quero pedir, fico mudo:
Me pague o que a Ele eu devo,
Me troque nada por tudo.
Tudo o que for verde seca,
Vindo o rigor do Verão;
Tudo no mundo se acaba,
Só a graça de Deus não.
Ó Rosa, já hoje em dia
Quem mais faz menos merece!
É a terra que nos cria,
Deus do Céu quem nos conhece.
Agora um soneto duma poetisa anónima do século XVII. Se calhar era uma irmã, como as clarissas de Vila do Conde. O seu tema é pascal, não natalício: é uma meditação monologada sobre as Chagas do Crucificado, uma oração.
A vós correndo vou, Braços sagrados
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que para receber-me estais abertos
E por não castigar-me estais cravados.
A vós, divinos Olhos eclipsados,
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Que para perdoar-me estais despertos
E por não devassar-me estais fechados.
A vós, pregados Pés por não fugir-me,
A vós, Cabeça baixa por chamar-me,
A vós, Sangue vertido para ungir-me,
A vós, Lado patente, quero unir-me,
A vós, precisos Pregos, quero atar-me
Para ficar unida, atada e firme.
É um texto conceituoso e cheio de paralelismos e anáforas, mas que faz todo o sentido. Não basta dizer que a Cruz é um símbolo cristão, é preciso muito mais, é preciso perceber o sentido do sofrimento redentor do Filho de Deus, que é que dá depois sentido ao sofrimento humano.
O Natal, a chegada daquele “que vem em nome do Senhor”, só se esclarece em definitivo na Cruz: o menino deitado no presépio já a anuncia.
Os meus votos de um santo e feliz Natal para os ouvintes do Venha daí!