quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A caminho do Natal

Quando, há já mais de dois anos, eu aqui falava da poesia de tema religioso, não conhecia um livro, preparado por José Régio e por um colaborador, de nome Alberto Serpa, dedicado a essa poesia. Sabia que ele existia, mas não o conhecia. Recentemente procurei-o no Centro de Estudos Regianos, em Vila do Conde, e encontrei-o. Tem por título Na Mão de Deus. Antologia da Poesia Religiosa Portuguesa, e foi publicado em 1958. Vou ler dele um pequeno conjunto de quadras soltas seleccionadas e um soneto. Cada uma das quadras contém uma pequena lição a meu ver muito oportuna.

Tu chamas amor-perfeito
A coisas que a terra cria;
Amor-perfeito há só um,
Filho da Virgem Maria.

Quem quiser amar a Deus
Não diga que não tem tempo:
Pode andar no seu trabalho
Com Jesus no pensamento.

No ventre da Virgem Mãe
Encarnou divina graça;
Entrou e saiu por ela
Como o sol pela vidraça.

Se este mundo for ao fundo,
Cheio das ondas do mar,
Inda fica o Outro Mundo
Que a gente ganha a rezar.

Sou cigana do Egipto
O meu ofício é furtar.
Hei-de furtar Deus Menino
Prà minha alma se salvar.

Já pedi a morte a Deus,
Que disse que não ma dava,
Que pedisse a salvação
Pois que a morte certa estava.

Tu dizes que não há Deus,
Afirmas que nunca O viste.
Inda não foste ao Brasil
E bem sabes que ele existe.

Amar e saber amar,
Amar e saber a quem:
Amar a Nossa Senhora,
Não amar a mais ninguém.

Peço a Deus, mas não me atrevo,
Quero pedir, fico mudo:
Me pague o que a Ele eu devo,
Me troque nada por tudo.

Tudo o que for verde seca,
Vindo o rigor do Verão;
Tudo no mundo se acaba,
Só a graça de Deus não.

Ó Rosa, já hoje em dia
Quem mais faz menos merece!
É a terra que nos cria,
Deus do Céu quem nos conhece.

Agora um soneto duma poetisa anónima do século XVII. Se calhar era uma irmã, como as clarissas de Vila do Conde. O seu tema é pascal, não natalício: é uma meditação monologada sobre as Chagas do Crucificado, uma oração.

A vós correndo vou, Braços sagrados
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que para receber-me estais abertos
E por não castigar-me estais cravados.

A vós, divinos Olhos eclipsados,
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Que para perdoar-me estais despertos
E por não devassar-me estais fechados.

A vós, pregados Pés por não fugir-me,
A vós, Cabeça baixa por chamar-me,
A vós, Sangue vertido para ungir-me,

A vós, Lado patente, quero unir-me,
A vós, precisos Pregos, quero atar-me
Para ficar unida, atada e firme.

É um texto conceituoso e cheio de paralelismos e anáforas, mas que faz todo o sentido. Não basta dizer que a Cruz é um símbolo cristão, é preciso muito mais, é preciso perceber o sentido do sofrimento redentor do Filho de Deus, que é que dá depois sentido ao sofrimento humano.
O Natal, a chegada daquele “que vem em nome do Senhor”, só se esclarece em definitivo na Cruz: o menino deitado no presépio já a anuncia.
Os meus votos de um santo e feliz Natal para os ouvintes do Venha daí!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Matias Lima

Há muitos anos publiquei no Boletim Cultural Póvoa de Varzim um pequeno trabalho sobre um poeta que conheci de vista quando era adolescente. Chamava-se Matias Lima. Era um homem abastado, culto, que nasceu e viveu principalmente no Porto, mas que tinha antepassados próximos de uma terra vizinha da minha e sobretudo possuía uma bela residência nas redondezas. Nasceu em 1885 e faleceu em 1970.
No meu tempo de criança e mesmo adulto, eu não sabia nada da obra dele. Foi só quando já ensinava na Póvoa que coleccionei a sua obra, adquirida num alfarrabista do Porto. Ele tem um poema em que fala dos sinos que tocaram quando eu fui baptizado; vou lê-lo. Intitula-se “Tarde de Agosto” e data de 1944.
Domingo. O sol molesta,
Incendeia o horizonte.
Tocam sinos à festa
Em S. Pedro do Monte.

Num ramo de giesta
Canta um melro defronte.
É poeta: manifesta
O estro de Anacreonte.

Nos fios telefónicos
Andorinhas baloiçam...
Outras cruzam pelo ar.

E risonhos, harmónicos,
Os sinos de há pouco – oiçam! –
Repicam sem cessar.
S. Pedro do Monte é o nome antigo da minha terra; Anacreonte foi um poeta da Grécia clássica.
Matias Lima, como o P.e Meira Veloso de que já aqui falei, segue frequentemente uma poética de raiz parnasiana, objectivista, pouco lírica. É assim neste sonetilho.
No seu tempo, este poeta devia ser considerado um cidadão modelar. Não era uma pessoa muito criativa, soube agradar e teve êxito social e até cultural. Como autor de poesia, não conseguiu audiência significativa.
Falho de inspiração propriamente poética, a meu ver, muitas vezes versificou por sugestão da paisagem, sobre locais que visitava ou em que vivia. Vou ler o seu poema Recordando, que fala dos pescadores poveiros de outros tempos.
Relembro as lindas tardes de poesia
Passadas docemente à beira-mar;
Passadas na amorável companhia
Dos bons poveiros, corações sem par.

A minha vida triste, ao sol sem manchas,
Foi bela! O mar regia a sua orquestra.
Com os poveiros encostados às lanchas,
Eu me entretinha em fraternal palestra.

De quando em quando ouvia aos mais idosos
Narrações de trabalhos singulares:
Inclemências, naufrágios pavorosos
Que levavam o luto a tantos lares!

Quanta vez comparava a sua lida
Com a dos Poetas! Uns, do mar profundo
Extraindo alimento para a Vida...
Outros, da alma febril, luz para o Mundo!

Uns, engolfados nesse mar fatal;
Outros, por infortúnios perseguidos,
Nautas da Dor no pélago do Ideal!
Tanta vez soçobrados e vencidos!

***

É doce recordar, chorando e rindo,
Momentos de ventura, passageiros.
Ai, que saudades desse mar tão lindo!
Ai, que saudades desses bons poveiros!
Matias Lima fala noutros poemas da Póvoa, mas o soneto que se segue recorda o Convento de Santa Clara de Vila do Conde em 1912, então convertido em prisão…
Com que saudade intensa e verdadeira
Olho para essas grades! Faz-me mal
Pensar que ali passou a ideal
Silhouette de tanta linda freira!

Ao forte guizalhar duma liteira,
Ai, quanta vez a porta principal
Desse convento, abriu-se maternal
A receber mais uma companheira!

Essas freirinhas já todas lá vão...
No túmulo fizeram sua cela
E esse convento se tornou prisão.

Vêem-se agora às grades da janela
Os presos a seguir com distracção
O passo militar da sentinela!