sexta-feira, 24 de junho de 2011

Leonardo Coimbra

Vou falar de Leonardo Coimbra, um filósofo português das primeiras décadas do séc. XX, que viveu algum tempo na Póvoa.

Como é tema sobre que sei muito pouco, vou-me limitar a generalidades e citações. Mas justifica-se a abordagem.

Faz este ano 75 anos que ele morreu. Ele tinha nascido em Borba de Godim, na vila da Lixa, em 30 de Dezembro de 1883 e veio a falecer no Porto a 2 de Janeiro de 1936. Ensinou alguns anos no Liceu da Póvoa, o que está documentado na imprensa poveira e no arquivo desta escola. Além disso, datou o prefácio dum livro da Quinta de Balasar. Eu penso que, ao tempo da República, o dono dessa quinta, a chamada Quinta de D. Benta, era um decidido republicano, isto é, democrático – segundo abusivo sentido que então se dava à palavra. Era por conseguinte correligionário de Santos Graça, que foi quem trouxe Leonardo Coimbra para o Liceu.

Os 75 anos da morte de Leonardo Coimbra foram-me lembrados por um artigo saído em 8 de Junho no Diário do Minho, da autoria do Prof. Dr. José Gama. Recentemente também, o meu colega Antero Simões publicou um livro sobre este filósofo; foi estudado por vários autores no Boletim Cultural. Lembro ainda que a rua em frente ao liceu se chama Rua de Leonardo Coimbra.

Segundo o artigo de José Gama, pela profundidade e originalidade do seu pensamento, Leonardo Coimbra é considerado “como dos mais importantes, senão o mais importante entre os nossos pensadores do séc. XX”. A dada altura o autor delineia o plano do seu trabalho, o que dá alguma luz sobre os sentidos da obra do filósofo. Escreve ele:

“O pensamento filosófico de Leonardo Coimbra está bastante estudado, felizmente, em obras de grande profundidade, parti­cularmente nos diversos traba­lhos de investigação tema­ticamente orientados, para além dos inúmeros textos mais reduzidos de artigos e comuni­cações, nas mais variadas cir­cunstâncias. Não pretendo aqui, de modo algum, fazer qualquer síntese científica, a partir desses estudos nem ter a pretensão de dar uma visão aproximada ou aproximativa da filosofia e do sistema criacionista do autor. Tendo presente a perspectiva do significado da actualidade do pensamento de Leonardo Coimbra procurarei comentar inicialmente a sua dimensão filosófica e artística, deixando para um segundo passo a sua dimensão especificamente portuguesa”.

Depois, o plano é naturalmente desenvolvido.

Ouçamos algumas palavras do prefácio escrito em Balasar, que se destinava à edição portuguesa, saída em Lisboa, no Porto e no Rio de Janeiro, do importante livro de Platão intitulado Fédon; o pensador concluía assim o seu arrazoado:

“Ler Platão é cantar, sorrir, vogar em Beleza!

Que a nossa mocidade o leia, há-de sentir o peito alteado de orgulho, a fisionomia animada e forte, expressão dum íntimo movimento harmonioso e contente, que é o próprio bulício das asas da Alegria dentro do coração desperto.

Teorias de efebos, cantando o eterno triunfo da Aurora…

Quinta de Balasar, 1-9-18”.

Nestas frases nota-se o pendor poético da escrita de Leonardo Coimbra, assinalado por José Gama. Um pensador assim pode ir muito longe, como o aludido Platão, mas não brilhará propriamente como sistematizador. Antero Simões transcreve passos de Leonardo Coimbra em que ele fala, com uma enorme admiração, do Patrão Lagoa e do Cego do Maio.

Leonardo Coimbra, que se tinha afastado do catolicismo, regressou depois a ele. Veja-se como uma vez falou da última Ceia de Jesus:

"Jesus é a Bondade. É, por isso, a dádiva pura e integral. Vai dar-se para dar a sua vida infinita às pobres almas dormentes. Mas antes, deseja ainda com um grande amor passar uma Páscoa com os seus. E, nessa Ceia, que Leonardo da Vinci encheu dum infinito azul dum Céu aberto, é todo enternecimento dadivoso para com as pobres almas, que, por momentos, irão tremer, vacilando às ventanias da Paixão.

Acabada a Ceia, tomando em seu peito, aberto em imensa chaga piedosa, todo o sofrimento humano, vai à herdade de Getsémani dar-se ao mais formidável Vendaval de Dor, que jamais acoitou um coração…”

Fico por aqui. Deixo ao menos lembrado um nome importante da cultura portuguesa cuja vida teve inolvidáveis momentos passados na Póvoa de Varzim.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Para o Dia de Camões


Como ainda estamos próximos do Dia de Camões, vou falar deste poeta; em concreto, da sua canção X, a que começa Junto de um seco, fero e estéril monte.
Camões estava então, aí por 1560, na costa da África Oriental, junto a território da actual Somália, na entrada do estreito que liga o Oceano Índico ao Mar Vermelho. O lugar era um ponto sensível, como aliás também o é hoje. Na altura, o controlo da entrada desse estreito possibilitava aos Portugueses dominar o comércio que vinha pelo mar desde a Índia, China ou Japão. O poeta estava ali em serviço militar, mas, se menciona os horrores do lugar, não menciona a actividade em que estava envolvido. Começa assim:

Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido;
onde nem ave voa ou fera dorme,
nem rio claro corre ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído; […]

E mais à frente conclui a frase:

Aqui, no mar, que quer apressurado
entrar pela garganta deste braço,
me trouxe um tempo e teve
minha fera ventura.

O mar “quer apressurado / entrar pela garganta deste braço” certamente por o Mar Vermelho ser rodeado de terras áridas, o que provocará grande evaporação, causando um contínuo fluxo de água ida do Índico.
Depois o poeta prossegue:

Aqui, nesta remota, áspera e dura
parte do mundo, quis que a vida breve
também de si deixasse um breve espaço,
porque ficasse a vida
pelo mundo em pedaços repartida.

Num país de emigração como tradicionalmente foi o nosso, muitas vidas ficaram pelo mundo em pedaços repartidas, ao modo da de Camões. Mas devia ser uma experiência dolorosíssima, sobretudo quando uma carta só podia ter resposta meio ano ou mais depois.
Continuemos a ouvir as queixas do poeta:

Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e d'ira cheios,
não tendo tão somente por contrários
a vida, o sol ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios,
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria natureza;
também vi contra mi,
trazendo-me à memória,
algüa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.

Por comparação com os sonetos, uma canção como esta alia o tema amoroso ao do continuado infortúnio do poeta. Comum aos dois temas é a expressão sempre vigorosa, vivida que o poeta põe no que escreve. A poesia do encantamento amoroso ou as queixas contra o desconcerto do mundo têm raiz na vida do autor; por isso têm tanto sentido de coisa experimentada, não de ficção literária.
Passemos à estrofe seguinte:

Aqui estiv'eu com estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas, que caía
(e vede se seria leve o salto!)
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar, e nuns suspiros
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna;
soberba, inexorável e importuna.

Esta desesperante situação do poeta é curiosamente idêntica à do Adamastor, o gigante que ameaçava a navegação portuguesa no Cabo dito da Boa Esperança: ambos frente ao mar, rodeados de um meio agreste, ambos remoendo um amor fracassado, ambos em fúria.
A Canção X é extensa, mas não vou ler mais versos dela. A propósito destas dramáticas, doridas queixas, vou concluir com a leitura dum também vigoroso soneto de Camões; diz assim:

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das coisas que passaram
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Os dois versos finais parecem do Adamastor...
Tiremos ao menos disto que a poesia do nosso maior poeta brotou duma experiência muito dolorosa. Nós dedicamos-lhe um dia, como a um santo; convém que saibamos que ele passou muito: a sua vida ficou “pelo mundo em pedaços repartida”. Aprendê-lo também é comemorar o seu dia.