Como há dias se celebrou o 5 de Outubro, vou hoje dar conta de dois acontecimentos de há 100 anos atrás, um de princípios de Agosto, outro de fins de Julho.
Os ouvintes estarão lembrados que eu tive alguma intervenção local na comemoração do centenário da República, uma intervenção crítica, como me parecia que era oportuno. O tema era para mim de especial importância por implicar com a infância da pequena que é hoje a Beata Alexandrina. Evoquei por isso factos graves, da responsabilidade dos fanáticos do novo regime. Mas o centenário dos mais desses factos ainda está a decorrer ou vem a caminho, pois tiveram lugar em 1911 ou 1912. O primeiro dos dois acontecimentos que vou evocar tem a ver com arrolamento dos bens das paróquias.
A República pretendia acabar com a Igreja e tomou gravosas medidas no sentido de alcançar este objectivo, como, entre outras, tentar privar os párocos de qualquer rendimento económico, para os dominar pela penúria.
Nos meus apontamentos anteriores, falei das igrejas pequeninas e antigas. A sua construção, manutenção e actualização foram tarefas custosíssimas para aquelas comunidades de tão poucos recursos. Mas era lá que praticavam os actos mais importantes da vida, como o baptizado, o casamento, e que finalmente eram sepultados, ou no seu adro. Ora a República, tiranicamente, sem apelo, nacionalizou-as todas.
Há um ano atrás, eu não conhecia nenhum dos documentos concretos dessas nacionalizações, os chamados arrolamentos. Hoje conheço um, o único que subsiste no concelho da Póvoa, creio eu, e que é o de Terroso. Começa assim:
Aos oito dias do mês de agosto do ano de 1911, nesta freguesia de Terroso, estando presentes os membros que compõem a comissão concelhia de inventário, senhores António dos Santos Graça, administrador e presidente, Mário da Silva Monteiro, servindo de secretário de finanças, e Domingos António Vieira da Silva, presidente da comissão paroquial respectiva, a fim de, de harmonia com o artigo sessenta e dois da Lei da Separação, se proceder ao arrolamento dos bens pertencentes às igrejas, como fez, principiando pela forma seguinte:Nº 1, bens imobiliários […].
Uma vez uma poveira referia-se a Santos Graça, com alguma ironia, como o democrata. Que democracia havia num acto destes? Não estava aqui a usurpação mais vil dum direito elementar?
E ele não vinha como funcionário que se limita a cumprir o que a autoridade lhe manda. Não, ele, como o documento afirma, era a autoridade, o administrador do concelho, um cargo que assumiu voluntariamente. Foi ele que levou a tribunal quatro vezes o jornal O Poveiro, foi ele que o censurou, que finalmente o silenciou e que expulsou o Prior da Póvoa.
A tirania dos arrolamentos era execrável. Mas num caso como o de Balasar então enchia as medidas. A igreja entrara ao culto no final de 1909, ainda inacabada, paga pelo povo da freguesia. Pois neste momento, ainda a cheirar a tinta, era nacionalizada.
Veja-se agora o que se tinha passado no Outeiro Maior uma semana antes da ida de Santos Graça a Terroso. Na pequena freguesia celebrava-se uma participada festa ao Coração de Jesus. No dia, de manhã, houvera comunhão geral e, de tarde, realizara-se uma procissão em honra do SS. Sacramento. Passo a ler uma notícia saída no semanário O Poveiro, o tal que era protegido pelo Prior.
Como que a pôr um embargo à alegria que todos sentiam no meio de tão linda e religiosa festividade, por ser a única que agrada e consola o coração do verdadeiro cristão e está no ânimo de todos os habitantes desta freguesia, apareceu um ofício do cidadão Administrador do Concelho de Vila do Conde, com a nota de “urgente”, que ao conhecer-se produziu o efeito de um frigidíssimo duche. Dizia assim:Tendo conhecimento de que nessa freguesia se costuma anualmente fazer umas práticas e confissões, sob a denominação de Coração de Jesus, tenho a dizer-lhe que tais práticas são proibidas e punidas por lei. Queira pois não consentir e participar-me, caso não sejam acatadas as minhas ordens. Saúde e fraternidade.Ao cidadão regedor da freguesia de Outeiro.Vila do Conde, 27 de Julho de 1911.O Administrador do Concelho – Luís da Silva Neves.
Que desastrado fervor republicano o dos administradores destes dois concelhos vizinhos! Então era “proibido e punido por lei” celebrar uma festa em honra do Sagrado Coração de Jesus?